Por Soraya Belusi
Uma aparente sensação de normalidade parece estar permanentemente impregnada da proximidade de algo estranho acontecer. É justamente nessa intersecção que parecem se sustentar as breves histórias compõem “Delírio” & “Vertigem”, montagem que finaliza o processo do Oficinão do Galpão Cine Horto 2012, com direção de Rita Clemente e dramaturgia de Jô Bilac.
Personagens cruzam a história de outros em “Delírio” & “Vertigem”, do Oficinão (foto Guto Muniz) |
As curtas narrativas do dramaturgo carioca, que ganhou destaque na cena nacional com trabalhos como “Cachorro!” e “Savana Glacial”, apropriam-se de situações cotidianas para evidenciar o absurdo nelas contidas, através de personagens que, em algum momento limítrofe, perdem o controle. O tom quase realista adotado e alcançado pela atuação colabora para que esses “estados alterados de consciência” que avassalam os personagens se concretizem em cena.
Em todos os seus trabalhos anteriores, Rita Clemente buscou em suas encenações formas que traduzissem o conteúdo, que fossem ao mesmo tempo não apenas embalagens para o que se quer dizer, mas, também, discurso. Neste, as escolhas formais da encenadora já começam nessa opção por dividir um espetáculo em duas partes (ou seriam dois espetáculos?), abrindo ao espectador a decisão final de interpretá-las como unidades complementares de um todo ou células totalmente independentes uma da outra.
Porém, a ideia de que um contém o outro (explicitada, por exemplo, nas formas do quadrado e do círculo desenhadas no programa do espetáculo) parece guiar a encenação. Essa poderia ser uma chave de entendimento para a presença de uma cena de “Delírio” ser retomada sem nenhuma “justificativa” aparente, por outros atores, em “Vertigem”. Ao mesmo tempo que separa, em dois espetáculos distintos, essas noções de espaço público e privado que guiam as histórias, Rita Clemente promove durante a encenação o entrelaçamento dessas esferas, causado, entre outros elementos, pela presença permanente de personagens que faziam parte da história anterior ou que ainda viriam a narrar suas existências. A questão é que essa escolha da encenação, que poderia gerar ecos interessantes também na problematização do entendimento que temos dessas esferas, não encontra respaldo nas histórias apresentadas na segunda “parte”, ao apenas retomarem os dilemas e conflitos já apresentados sem acrescentar a eles uma outra perspectiva.
Os elementos de cena reforçam a ideia de atemporalidade (foto de Guto Muniz) |
Cenário e figurino parecem também ressaltar a ideia de indefinição no tempo e no espaço. Os personagens compartilham o mesmo espaço de ação, com a inserção de um ou outro elemento necessário à sua narrativa. Tudo parece cotidiano em um primeiro olhar, mas essa sensação é quebrada com sutis pitadas de estranhamento, evidenciadas, por exemplo, no deslocamento das sobrancelhas com a maquiagem ou ainda pela exclusão das cores e a opção pelo preto e pelo branco (com algum verde).
Delírio e vertigem, como definidos no dicionário, são ambos estados mentais. O primeiro insiste em admitir como verdade aquilo que é negado pela evidência, enquanto o segundo inclui a impressão de que tudo ao redor esteja girando. As personagens de Jô Bilac parecem estar entre um e outro, percorrendo os extremos do sentimento, perdendo o controle. Mas, quando mostradas uma após a outra, passa-se a esperar o absurdo contido na próxima situação a ser apresentada e, com isso, a possibilidade de nos espantarmos e surpreendermos com suas atitudes corre o risco de se diluir.