Por Valmir Santos – Teatrojornal (*)
A face onisciente de Cristo no pé-direito do palco, do queixo aos fios de cabelo, justapõe as escalas do sagrado, do humano e do espaço cênico em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus. A imagem de forte carga simbólica e de construção histórica evidente redundaria o título da obra não fosse ela mesma convertida em dispositivo seminal da companhia Socìetas Raffaello Sanzio. Seu diretor, Romeo Castellucci, enquadra apenas a cabeça em vez do gesto e parte do torso da pintura do renascentista Antonello da Messina que o inspira. O enigma dessa fisionomia estabelece um campo autônomo ao observador que para ela desviará em muitas passagens do espetáculo em busca de significações ou ressignificações talvez menos exasperantes do que aquela que enreda pai e filho. Em vão.
Foto de Ligia Jardim |
No plano realista, eles acabaram de acordar. O velho interpretado por Gianni Piazzi senta para assistir à televisão enquanto o filho, por Sergio Scarlatella, já com o figurino do executivo prestes a sair para o trabalho, lhe prepara o café da manhã. Esse fragmento de cotidiano sai dos eixos com a prostração do pai, sem controle sobre as necessidades fisiológicas, e a consequente impotência do filho diante do estado primitivo do ser e da iminência da finitude. Alegoria dos embates divino e humano.
Ao retratar a compaixão em circunstâncias limítrofes (a limpeza das fezes e a colocação da fralda geriátrica ocorrem na cadência factual), Castellucci cuida em contrapor a presunção teatral. Ela está dada desde os primeiros longos minutos em que rastreamos a casa de móveis assépticos, de sofá, mesa, cadeiras, carpete e tudo mais tomado pelo branco, exceto o aparelho de TV de costas para o público e uma planta num vaso. Eis o set. Corpo arqueado, andar titubeante, o pai surge carregado por dois contrarregras vestidos de preto, feito manipuladores de bonecos. A partitura do filho que congela o gesto da mão estendida nas costas do pai na hora de limpá-lo ou um galão com o composto que sugere os excrementos em cena são indícios do artifício da arte ao vivo a sustentar o fio das presenças e dos mal-estares.
No segundo movimento do espetáculo a relação pai e filho, até então permeada pela parábola do sagrado, converte-se em instalação. A casa é desmontada aos olhos do espectador, menos a cama em que o pai está sentado, abatido, cabisbaixo, com o rosto entre as mãos. A narrativa ganha o contorno moral, ou seja, pertence ao domínio do espírito do homem. Crianças atiram objetos contra o Cristo de traços humanizados lá na Renascença (Kurt Cobain seria um bom modelo para encarná-lo), justamente quando a arte ganha perspectiva, dá margem para interpretações. A ação das criaturas imberbes despejando objetos de suas mochilas e atirando-os na direção da criatura icônica pode ser lida como um levante, à maneira de Jó, ou como uma figura de retórica contra as gradações do fundamentalismo na ordem global. É o futuro confrontando o passado arcaico aqui e agora.
A iconoclastia irrompe de vez no movimento final da apresentação, quando a imagem se faz verbo. Entre as razões de conduzir ou se deixar conduzido paira “o ser ou não ser” shakespeariano, reafirmando que a teatralidade é o que suporta essa aventura do olhar que desde a cultura grega atinava com o pensar e hoje padece do excesso de imagens a ver. Ver é passagem. O olhar adere e transforma. É sensorial.
Assim como os demais espetáculos que trouxe ao Brasil, a longeva Socìetas Raffaello Sanzio segue impactando nas composições plásticas e sonoras dos sentidos vitais.
(*) Este texto faz parte das ações do Coletivo de Críticos durante a cobertura da MITsp.