– por Guilherme Diniz –
Crítica do espetáculo Zebra sem Nome, visto durante sua temporada de estreia no Sesc Belenzinho em julho de 2023, em São Paulo.
Segunda parte do ensaio: “A cena dos muriquinhos: para pensarmos os caminhos dos teatros negros para as infâncias e juventudes”.
Os contornos dramatúrgicos de Zebra sem nome, no fundo, acompanham as premissas básicas de um Bildungsroman, isto é, o dito “romance de formação”. Em resumo, este gênero romanesco, surgido na Alemanha do século XVIII (mas espraiado para outras tantas épocas e localidades, além do mundo setecentista e europeu), busca essencialmente narrar o processo de amadurecimento de um indivíduo, apresentando as aventuras, entre angústias e felicidades, que, de uma forma ou de outra, moldaram as concepções de mundo da personagem principal, marcada por esperanças, incertezas e inquietudes. A gradual autoconscientização e os aprendizados desenvolvidos estão centrados nos modos como o sujeito narrado explora o universo, atravessando um sem-número de experiências transformadoras. Ao fim e ao cabo, tais romances nos mostram seres que, ao almejarem uma formação mais ampla e um aprimoramento de suas personalidades, constroem o seu lugar no mundo, esculpindo, para si, sentidos da vida.
A obra de Maria Shu está recheada destes elementos. A dramaturgia nos convida a seguir os passos de uma zebrinha desejosa de conhecer profundamente a si mesma. A sua grande aflição, como o próprio título da peça não nos deixa esquecer, é o fato de não possuir um nome que a singularize. Além do mais, os pais da carismática protagonista foram brutalmente assassinados por um leão. Estes infortúnios geram uma crescente sensação de “não pertencimento”, como se inexistisse para ela um lugar, físico e simbólico, para chamar de seu. Eis as grandes problemáticas de Zebra sem nome. Na busca por sua identidade, a personagem irá, paulatinamente, expressar (e edificar) seus posicionamentos e desejos, ora aceitando, ora recusando as agridoces propostas de uma sociedade espinhosa. A zebrinha, aos poucos, compreende que elaborar sua identidade não é tarefa individualista, fechada no “EU”, mas é uma reconstrução de suas relações com as demais criaturas, com as histórias (as íntimas e as coletivas) e com os desafios que esta realidade impõe. A propósito, este ponto é importantíssimo em um espetáculo que, segundo o seu programa é um “[…] convite a conhecer a potência de uma mulher negra se descobrindo através do olhar de uma zebra”. Este ato de se descobrir, de compor a própria identidade não é, de maneira alguma, uma clausura ou uma autossuficiência. Assad Haider, em As Armadilhas da Identidade nos alerta para estes perigos concentrados num superindividualismo egocêntrico que reduz tudo a si mesmo, antes reforçando do que desmantelando as estruturas opressivas. Na experiência histórica dos povos negros, os laços de solidariedade, o enfrentamento coletivo, os aquilombamentos são tecnologias que nos permitem até hoje afirmar nossas existências sem os deslizes do egocentrismo.
Em texto anterior, discorri sobre a expansão dos teatros negros para infâncias e juventudes[1]. É neste contexto histórico e artístico que, creio eu, se deve observar o espetáculo em questão. Zebra sem nome ancora a sua poética em sonoridades, paisagens e gestualidades africanas e afro-diaspóricas, além de evocar a vida de mulheres negras cujas trajetórias, nos mais diversos campos profissionais, se projetam como luzes a inspirar a própria caminhada da zebra. As peripécias do animalzinho se convertem em metáfora do complexo processo de construção (e reconstrução) de nossas identidades negras em uma realidade que insiste em nos homogeneizar, negando, violentamente, nossas subjetividades. Ora, a questão nominal, do ponto de vista histórico, não é menor, se considerarmos como o tráfico transatlântico e a escravização apagaram inumeráveis prenomes e sobrenomes africanos, impondo, por exemplo, alcunhas europeias. Ou ainda, basta atentarmo-nos para a manifestação do racismo que, no caso das infâncias e juventudes negras, reproduz apelidos dolorosos, apagando, uma vez mais, os nomes e as particularidades de crianças e adolescentes pretos.
Aqui encontramos Maria Shu novamente fabulando para as plateias infantojuvenis. Tanto em Quando eu morrer vou contar tudo a Deus, quanto em Zebra sem nome, os protagonistas realizam a mesma jornada, isto é, partem de suas terras, enfrentam desafios alhures e retornam para seus territórios de origem. Em ambos os casos, contemplamos a saga de criaturas que se reinventam ao longo do caminho, se refazem internamente nas andanças, repensam suas histórias a partir das travessias desejadas e/ou impostas. É pelo deslocamento, vivendo como estrangeiras, que as personagens enxergam e desnaturalizam as contradições do mundo para, enfim, desenvolver relações mais vívidas com seus próprios universos interiores e exteriores.
Embora o método comparativo não me pareça tão interessante, talvez seja impossível negar que, em termos estruturais, a segunda obra seja mais frágil. As agruras do menino Abou adquiriram, dramaturgicamente, uma densidade poética e narrativa que se articulava de modo mais orgânico na composição do texto. A dramaturgia de Zebra, ainda que dotada de forte comunicabilidade, presente nas diversas passagens cômicas e irônicas, é menos coesa, sobretudo na segunda metade do espetáculo. Voltarei a este ponto mais adiante, mas na última parte da peça (especialmente a partir da cena do supermercado) a impressão é de que o texto fora escrito por outra dramaturga, devido à mudança tão brusca e incoerente no tom e no vocabulário. O espetáculo, a princípio para crianças, se transforma em uma obra para adultos ou adolescentes maiores.
O grande problema não é temático, mas formal. Quando eu morrer… aborda assuntos graves, como a morte, as crises migratórias e a violência racial, porém articulados em uma narratividade congruente do início ao fim. Não é o que se vê em Zebra sem nome, cujos esquemas dramáticos possuem, aliás, certo esquematismo, certa previsibilidade. Depois de sair da savana, a zebrinha passa por um zoológico, um circo e um supermercado, voltando para casa no final. Em cada lugar, o arranjo é mais ou menos o mesmo: a protagonista se apresenta, explora as características do espaço, se envolve em algumas trapalhadas, resolve suas diferenças e passa a conhecer alguma eminente mulher negra que a motivará. Porém, se a sua estrutura dramatúrgica é um tanto esquemática, a armação de tantas situações, compostas por encontros e desencontros, coloca em primeiro plano o jogo de cena entre os atores, as contracenas dinâmicas e a plasticidade dos deslocamentos pelo palco bastante livre.
É preciso dizer que esta é a primeira encenação de Marina Esteves. A estreia de uma diretora negra não é, sob nenhum aspecto, uma questão de somenos. Há motivos de sobra para celebrarmos a sua presença neste ofício, a direção teatral, historicamente tão branca, tão masculina. A crítica teatral Heloísa Sousa, da plataforma Farofa Crítica, ao refletir sobre a presença de mulheres em nossas artes cênicas contemporâneas, afirma que “nunca houveram tantas encenadoras, dramaturgas e autoras mulheres no front do teatro brasileiro simultaneamente, alcançando tanto (ou mais) espaço e notoriedade quanto os antigos nomes de homens consagrados pela história do teatro nacional”.[2] A crítica cita Grace Passô, Laís Machado, Lua Menezes, Letícia Bassit, Janaína Leite, Carolina Bianchi, entre outras profissionais que vêm consolidando projetos artístico-políticos no campo da encenação. É possível igualmente mencionar, sem esgotar o assunto, a existência de Roberta Estrela D’Alva, Onisajé, Naruna Costa e Michele Sá. Ainda nesse âmbito, vemos surgir, em 2020, o coletivo Mulheres Encenadoras[3], fundado por artistas da capital mineira, visando difundir o trabalho de mulheres diretoras de teatro. O despontamento de mais uma encenadora é, seguramente, parte destas movimentações históricas que, apesar das dificuldades, vem contestando hierarquias, desigualdades e exclusivismos na arte brasileira, em sua totalidade.
Marina Esteves é fundamentalmente uma atriz. Não pretendo com isso resumi-la, mas contextualizar o seu exercício profissional dominante. Cofundadora d’O Bonde (SP), colaborou com os grupos La Mínima e Núcleo Atômico, além de já ter atuado em Gota D’Água {Preta}, para citar alguns trabalhos mais destacados. Portanto, é, acima de tudo, pela atuação cênica que Marina vive o teatro. Estou a ressaltar este tópico por uma simples razão: é na direção dos atores que a estreante encenadora se afirma mais contundentemente. As marcações, os desenhos de cena e as qualidades de movimento, propostos por Marina, primam pelo vivaz jogo físico entre o elenco, acentuando as suas expressividades corporais e faciais. O que se vê em cena são corpos, por assim dizer, brincantes, em estado constante de ação. Há cumplicidade na relação.
Fotos de Ethel Braga
Joy Catharina e Jhonny Salaberg compõem o reduzido elenco. Ela dá vida à serelepe protagonista; ele encarna Gigi, a fiel amiga girafa, assim como as demais criaturas que a listradinha encontrará em suas viagens. Os registros de atuação não desejam, é presumível, qualquer realismo. O mais notável traço na representação das personagens animalescas é que ela permanece sempre a meio caminho entre o humano e o bicho. A zebra, a girafa e o tiê-sangue são estilizados por meio de detalhes espalhados pelos corpos. Um certo meneio dos punhos, curvaturas maiores ou menores na coluna, sutis movimentações com a cabeça e com os membros superiores e uma arqueação calculada das pernas já sugerem o animal, mas sem ofuscar a imagem do ator e da atriz, assumindo, pois assim, o artifício teatral. O figurino de Felipa Damasco se insere nesta mesma linha, pois não passa de uma suave indicação dos bichinhos, utilizando cores e elementos mínimos por sobre uma base preta. A cenografia de Livia Loureiro procede de forma semelhante, valendo-se de estruturas elementares, facilmente removíveis e sem quaisquer compromissos com a verossimilhança realista. Um banquinho, um cartaz e uma exígua lona de circo já constroem os ambientes. Tais recursos convocam o encantamento poético, ou, em outras palavras, a imaginação que, por seu turno, é constantemente fermentada pela dupla em cena. Aí está o foco.
Cabe a Joy Catharina a enorme incumbência, ao interpretar a Zebra, de atuar como fio condutor de todo o espetáculo, pois é ela quem transita por todas as localidades do enredo. Conhecemos, afinal, a história pela sua perspectiva, no rastro de suas patinhas. A atriz molda uma personagem, em primeiro lugar, carismática. É este carisma que faz as crianças (e nós adultos também) se aproximarem tanto dela, se identificarem com suas façanhas. Para isso Joy maneja uma máscara facial, entre caras e bocas, muito elástica, bem como desenha qualidades de movimento que, por vezes, nos lembram um cartoon, isto é, um desenho animado preenchido de movimentações ágeis e imprevistas, num corpo feito de molas, não de estruturas ósseas. Ela também conduz o público por meio de seu canto, sustentado por uma voz encorpada, especialmente nos registros médios. Aliás, é impossível manter-se indiferente à direção musical de Felipe Gomes, constituída por letras (os refrãos, por sinal, não nos abandonam ao término do espetáculo) e musicalidades (até mesmo Earth, Wind & Fire marca presença) que, de alguma maneira, evocam a energia vibrante dos clubes e dos bailes negros.
Jhonny Salaberg é a outra metade da dupla. Ele encarna as demais criaturas que interagem com a personagem-título. Da girafa Gigi ao gerente do supermercado há enormes diferenças. É destacável no trabalho do ator estas variações corporais e vocais, as distintas posturas assumidas e a versatilidade para transitar por tipos tão distantes. Mas, de fato, é como Gigi e como Mingo, o tiê-sangue, que Jhonny se projeta mais. Nestes dois animaizinhos, as ironias, os trocadilhos e o humor se sobressaem, delineando momentos intensamente divertidos. Contudo, há certas fragilidades nas suas cantorias. Tenho a impressão de que o seu apoio vocal é um tanto irregular, gerando algumas instabilidades na emissão.
Se na direção dos atores, Marina Esteves é segura, o mesmo não se pode dizer de sua vacilante marcação rítmica. O espetáculo se inicia agilmente e termina ralentado, algo truncado, sem aquela dinâmica tão viva do começo. O final da cena no circo já prenuncia este problema que, por sua vez, se agrava no supermercado. Este trecho, além de dramaturgicamente mais fraco, como já observei, perde muita vitalidade no andamento e no ritmo. E há nesta cena um curioso paradoxo, pois é aí que a luz de Matheus Brant se mostra mais envolvente, construindo cubículos luminosos que avançam para a plateia, como se estivéssemos realmente em uma metrópole com todas aquelas incontáveis janelas dos arranha-céus. Mas, em geral, o trabalho do iluminador criou excessivas penumbras e sombras, escurecendo por demais o palco. Em certos momentos não nos era permitido ver bem as expressões faciais.
Após as adversidades, a zebra sem nome regressa ao lar, compartilhando com seus amigos os conhecimentos aprendidos lá fora, como se dissesse: “fui aprender a ler para ensinar meus camaradas”. Nêgo Bispo nos ensina que “é preciso aprender a voltar para casa”. A zebrinha compreende que, na sua terra, no seio de sua comunidade há fontes vivas de energias e saberes de onde brotam também a sua história. No mundo externo há, inequivocamente, potentes experiências e encontros que nos formam. Mas em nossos próprios territórios geográficos e simbólicos existem marcas, afetos, vivências e memórias constitutivas de nosso ser. Entender isso é indispensável não para idealizar uma origem limitadora, mas para vivenciar a identidade como um processo entre aquilo que fui/de onde vim e aquilo que virei a ser/ para onde irei. Esta circularidade na trajetória da heroína listrada (em cena há, inclusive, um grande círculo branco onde ocorre a maior parte da ação) que sai e retorna, lembra-nos que nas nossas africanias o tempo não é linear, o passado não é descartável, nem tampouco abandonado, mas se recria, se renova. É Leda Martins quem nos diz que: “a ancestralidade é clivada por um tempo curvo, recorrente, anelado; um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide”. Assim assimilo a caminhada da protagonista em direção à sua identidade, à sua ancestralidade e ao seu agir no mundo a partir de tudo, todos e todas que lhe antecederam.
Zebra sem nome é parte de uma constelação de teatralidades negras para infâncias e juventudes. As suas dimensões espetaculares e reflexivas têm muito a dizer às crianças negras, tão expostas à barbárie deste mundo desumanizador, apresentando-lhes possibilidades belas e sensíveis de habitar a vida, propondo maneiras delicadas (e fortalecedoras) de olhar para si mesmas, seus corpos, traços e matizes. De todo modo, é um estímulo para que toda e qualquer criança (em verdade, toda e qualquer pessoa) construa relações baseadas na solidariedade, na parceria, respeitando e se afetando pela pluralidade de que é feita a existência.
Ficha técnica
Concepção e Direção geral: Marina Esteves
Dramaturgia: Maria Shu
Reelaboração textual e dramaturgismo: Jhonny Salaberg, Joy Catharina e Marina Esteves
Elenco: Joy Catharina e Jhonny Salaberg
Direção musical e trilha sonora original: Felipe Gomes Moreira
Produção musical: Dani Nega
Musicistas: DJ K-Mina, Jonatah Cardoso e Larissa Oliveira
Preparação corporal, direção de movimento e coreografias: Marina Esteves
Desenho de luz: Matheus Brant
Operação de luz: Juliana Jesus
Figurino: Felipa Damasco
Modelista: Raquel Brandão
Cenografia e adereços: Livia Loureiro
Execução de cenário e mobiliário: Mateus Fiorentino
Desenho e operação de som: André Papi
Videografismo: Gabriela Miranda
Ilustrações e quadrinhos: Gabu Brito
Orientação cômica e circense – cena circo: Filipe Bregantim
Orientação em jogos e encantarias: Vanessa Rosa
Provocação cênica: Filipe Celestino
Estágio: Chidi Portuguez
Cenotécnica: Helen Lucinda
Fotografia: Ethel Braga
Mídias sociais: Isabela Alves
Assessoria de imprensa: Márcia Marques – Canal Aberto
Produção jurídica: Corpo Rastreado
Produção executiva: Thiago Moreira
Produção artística: Katia Manfredi
Idealização: Marina Esteves e Maria Shu
Realização: Sesc SP
Apoio: Prêmio Zé Renato
[1] A primeira parte destas reflexões pode ser lida por meio do link https://www.horizontedacena.com/a-cena-dos-muriquinhos-para-pensarmos-os-caminhos-dos-teatros-negros-para-as-infancias-e-juventudes/
[2] O texto todo pode ser lido na íntegra por meio do seguinte link: http://www.farofacritica.com.br/criticas/conteudo/218/gralhas-em-estado-de-graca