— por Luciana Romagnolli —
Crítica de “Vaga Carne”, de Grace Passô (BH), originalmente publicada na Revista Trema! em 2016.
“Sou um excluído que produz um discurso. A palavra é o único indício de minha presença, e é só por meio dela que toda ação e toda a matéria podem aqui se realizar”.
Carlos de Brito e Mello, A Passagem Tensa dos Corpos, 2004, p. 116
Antes da atriz, quem entra em cena é a voz. No ambiente ainda iluminado onde os espectadores há pouco ocuparam suas cadeiras, a vibração sonora se propaga afirmando sua própria existência. “Vozes existem. Vorazes pelas matérias”, sussurra a contadora de histórias incorpórea a relembrar sensações das vezes em que invadiu corpos vários, animais ou inanimados. Captura aos poucos, e não sem risco de perdas, a atenção dos presentes. Até que a luz se apague ao comando da iluminadora Nadja Naira, colocando o espectador dentro de um espaço escuro: o interior de um corpo humano. Agora ocupado pela voz. “Peço que escutem pra que vocês tenham consciência de si mesmos, é tudo escuro (para a plateia) dentro de ti, ti, ti e ti e ti”, dirá.
Em Vaga Carne, solo escrito e encenado por Grace Passô, que estreou em março de 2016 no Teatro Paiol durante o Festival de Curitiba (e mereceu o prêmio Shell RJ de melhor autora em 2017), a divisão está dada no texto: a personagem é “uma voz errante no espaço”; o cenário, “um corpo de mulher”. Essa dissociação originária entre voz e corpo abre um campo de investigação para as relações teatrais, linguísticas e filosóficas travadas entre essas duas ambiências do ser humano. O que é um corpo antes de ser atravessado pela linguagem? O que é um corpo humano sem o olhar exterior? O que é uma voz sem corpo? E um corpo sem voz?
Grace faz-se, a si mesma, cenário para o encontro ou embate dessa voz misteriosa com o corpo de uma mulher. A carne dela é o edifício cênico da representação, o espaço de tensão entre forças inconciliáveis, enquanto o palco convencional permanece esvaziado senão pela luz e pela música ocasional. O corpo é também o instrumento – no sentido musical mesmo – de trabalho de uma atriz jazzista, a improvisar movimentos, ritmos, graves e agudos para além do diapasão esperado. Não se trata de uma voz que ilustra ou representa o que o corpo faz, mas uma voz invasora, como um vírus.
Em seu primeiro trabalho totalmente autoral desde a saída do grupo Espanca!, a atriz, diretora e dramaturga mineira permite-se um experimentar mais audacioso com a linguagem, com as palavras, os sons e os gestos, as interpretações e os sentidos. O desajuste entre a voz e o corpo, a voz e o pensamento, a voz e a vontade cria um jogo aparentemente simples, mas de alto risco, pois não há uma teatralidade externa na qual se apoiar. Música e luz interferem somente em função do agir desse corpo no espaço.
Uma das imagens mais marcantes é uma faixa de luz depositada apenas sobre os olhos da atriz, arregalados, fazendo saltar o espanto mútuo entre corpo e voz. Tudo depende da performance desse corpo no aqui e agora, o que torna o desafio potencialmente vibrante para uma atriz experiente e cheia de recursos. Grace caminha em corda bamba, no fio da faca, da primeira à última palavra dita. Sua voz opera uma verdadeira dissecação: destrincha o saber estabelecido.
De dentro para fora
Vaga Carne, em sua originalidade, tangencia universo semelhante ao do romance A Passagem Tensa dos Corpos (2008): o narrador criado pelo escrito mineiro Carlos de Brito e Mello é também um ser linguístico, uma voz descarnada, sem matéria, a vagar pelos espaços visitados pela morte. Presença estranha a observar as dores da efemeridade humana até que decida se apropriar de um corpo alheio. A linguagem como ser (narrador/personagem) nos dois casos é a matéria mesma da experimentação – com tem sido privilegiadamente na literatura e no teatro já há um século. Grace Passô investiga essa potência da linguagem desincorporada, de sua complexidade enquanto coisa, como ser além do humano. Ao menos, este será o disparador dramatúrgico de outras precipitações vindouras.
O texto explora o que seria a linguagem fora do humano, ainda que em relação a ele, ao conceder à voz uma ironia (e um sentido de superioridade) sobre o corpo que ocupa. “Estou me comunicando com palavras de um bicho humano porque vocês são tão egoístas que só entendem suas próprias línguas, poderia me comunicar em código morse, em sons inaudíveis, em ondas magnéticas ou qualquer outra coisa”, dirá. Em sua narrativa, a voz processa um estranhamento tanto dos aspectos físicos, ao descrever sensorialmente os órgãos quase num gozo, quanto dos emocionais, ao deparar-se com sentimentos como a carência, o vazio, a culpa e o apego ou com a experiência do esquecimento.
São plurais, portanto, as leituras possíveis sobre a tensão encenada entre voz e corpo em Vaga Carne. Seja essa voz alma, consciência, energia, reação química ou uma abstração do outro. Na cena armada por Grace Passô e seus interlocutores (Ricardo Alves Jr., Nadja Naira, entre outros), teatro, linguagem e filosofia são saberes acionados mais ou menos diretamente. Do primeiro, saltam as relações entre voz e movimento no trabalho corporal do ator, e como ambos constituem uma presença no espaço. No campo da linguagem, pode-se pensar nos posicionamentos discursivos que atravessam um sujeito e como este se constitui pela linguagem.
No encontro do corpo com a voz, é possível ver ainda a sugestão de uma ontologia do ser, pré-civilizatória. Mais do que o corpo cuja experiência ainda não havia sido elaborada enquanto linguagem, o que se mostra é uma linguagem cuja experiência ainda não havia sido elaborada enquanto corpo – humano. Na experiência humana, justamente, corpo e linguagem formam um par paradoxal de potência e limite: só é possível dizer o que cabe na linguagem, só é possível ser o próprio corpo, por mais adereços que se acoplem. Esticar, contorcer, desmembrar essas partes, por consequência, alarga o espectro dessa experiência.
Então, se de início vê-se o estranhamento entre voz e corpo trazer à cena uma versão poeticamente elaborada das experimentações textuais para além do domínio do sujeito – à semelhança das proposições das dramáticas transumanas de Roberto Alvim –, o destino de tal dissociação é outro: a contaminação mútua, a sedução da carne, as afetações inescapáveis, o apelo da subjetividade, enfim, um retorno ao humano. Tal percurso parte do impessoal para o pessoal; do universal para o individual. De um saber distanciado supostamente neutro para a experiência de mundo subjetiva, fonte de saber próprio. Do corpo qualquer para o corpo específico: com determinado registro de voz, cor de pele, altura, peso, formato dos fios do cabelo, sexo. Do estranhamento para o reconhecimento.
No mesmo mês de março de 2016, a portuguesa Grada Kilomba apresentou durante a 3ª MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo a palestra-performance Descolonizando o Conhecimento, confrontando a uma visão universalista do mundo o reconhecimento das relações de poder que definem tal universal e os posicionamentos marcados pela subjetividade (que a noção de neutro exclui) – no caso dela, como no de Grace, ser mulher e negra. Por caminhos outros, mas com ideias afins, Vaga Carne investiga o único universal possível: o interior do corpo humano, órgãos cuja existência e funcionamento estão alheios aos contextos sócio-culturais por não serem objeto do olhar do outro (ao menos, até que a fome ou uma bala os atinja).
Entretanto, o dentro não basta para dar conta da experiência humana. A autora concede à criatura a capacidade de perceber as condicionantes do corpo que habita e a incapacidade de não se contaminar, por mais que resista, pela experiência do tempo cronológico e pelos afetos intersubjetivos. O presente puro em que vivia a voz desdobra-se em passado e futuro inaugurando um processo de transformação marcado sobretudo pelo vínculo – ou apego. Ecos mais abstratos e estranhados dos brados de Por Elise (“Gente sente tudo, se envolve com tudo!”) e das relações familiares entranhadas de Amores Surdos, os primeiros textos de Passô montados com o Espanca!.
Outro detonador da transformação será a percepção do olhar do outro. Instância que converte Vaga Carne de peça intrassubjetiva (embora nunca em lírica, pois é dialógica a fratura do sujeito) em obra intersubjetiva. No universo interior, o outro da voz é o corpo: “Ei, mulher, você quer falar alguma coisa? Fala! Você quer fazer um discurso? Faz! Quer que eu fale por você?”. A passagem ao exterior interpela a plateia: “Já nem sei mais como é o corpo desta mulher por fora. Quem é ela? (…) Ela sempre foi mulher? De que cor ela é?”, indagará a voz, provocando nos espectadores respostas silenciosas.
Num registro excêntrico de voracidade/ferocidade, Grace constrói uma relação tensa com o público, identificado como esse olhar de fora que define e classifica o ser humano. As palavras solicitadas à plateia são a contraface da investigação interna, situam o corpo no mundo. “Anda, bichos ferozes, gritem alguma coisa que eu falo aqui, vamos invadir o corpo desta mulher com palavras”, incitará a voz. Suas palavras, que antes desviavam dos referenciais identificados aos campos discursivos associados ao movimento negro e ao feminismo, tornam-se menos neutras, mais específicas, contaminadas pela carne e pela alteridade. Explode a questão do lugar de fala como questão, não resposta.
Das tantas sugestões aventadas pelo texto, algumas mostram potencial para ser mais desenvolvidas, ganhando tempo para se dilatarem na imaginação do espectador. Especialmente, a relação da voz com a morte (e com a vida). A bala e a arma mencionadas trazem a imagem da violência: uma invasão do mundo externo capaz de aludir às altas estatísticas de homicídio da população negra, especialmente a jovem. Poeticamente, reaproximam a peça da literatura de Brito e Mello e seu revolver da linguagem frente à materialidade de um corpo moribundo.
Uma maneira de olhar para Vaga Carne é essa. Como um percurso prévio, do neutro ao pessoal, do objetivo ao subjetivo, de uma voz alheia que atravessa o corpo a uma voz atravessada e apropriada pelo corpo. Do escuro de dentro para o escuro de fora. Grace rompe a superfície e cava adentro, como quem prepara a terra para o que está por eclodir, para o que necessita aflorar além dos limites físicos do teatro: a voz daquela mulher.