Por Marcos Coletta
A luz branca refratada em suas cores espectrais quando incide sobre o prisma. |
Há alguns dias li na internet uma crítica, até bem escrita, sobre o projeto Janela de Dramaturgia que tachava os textos apresentados no evento de serem “textos para serem lidos em terapia”, “dramaturgia do umbigo”, “criação individualista”, menos textos para teatro. O autor reclamava da falta de diálogos e do excesso de narrações e prosa poética. E, por fim, não admitia que atores pudessem ser dramaturgos, pois, segundo ele, caem sempre na armadilha de escreverem só para si mesmos, e que o “verdadeiro dramaturgo de ofício” escreve para o outro.
Apesar de minha opinião ser diametralmente oposta ao dito acima, acredito que ambas devam habitar o mesmo espaço, do qual podemos aproveitar um movimento mútuo de instigamento.
Antes de tudo, creio ser útil recorrer ao conceito de “Teatro Íntimo” proposto nos longínquos 1907 por Strindberg e retomado por Jean-Pierre Sarrazac: este termo surge no seio da tensão entre o eu e o mundo. A voz do sujeito ecoa em um mundo desertado (como em Beckett), o “eu errante” emite suas vozes não inidentificáveis em um espaço não determinado, o eu dramático e o eu épico são postos em confronto e em perspectiva. Dá-se a abertura para um canal de expressão para o inconsciente, para o “recôndito irrepresentável”, mas refuta o escapismo e o encasulamento. “O íntimo como superlativo do ‘dentro’, o nível mais profundo do eu, quer se trate de alcança-lo pessoalmente ou abrir seu acesso a outro. O íntimo no teatro é, por fim, um paradoxo para a representação” (Sarrazac, 2012). Este “paradoxo” foi amplamente testado no século XX e se tornou elemento chave no teatro da contemporaneidade. Sua aparição é intrínseca às profundas revoluções teatrais do século passado, quando o teatro desconstruiu toda a sua estrutura vigente, questionando a presença do conflito, do diálogo, do personagem e a concepção própria do drama. Esta informação, apesar de tão amplamente difundida sempre vem a calhar quando o assunto é dramaturgia.
Para mim, o “verdadeiro dramaturgo” (seja qual for esta concepção de “verdadeiro”) já nasce como uma expressão tão alienada quanto reacionária, totalmente cega ao movimento inerente aos nossos tempos (e aos tempos passados). Se a história viu nascer tantos “ismos” que defenderam importantes movimentos de ruptura e tentaram instaurar novos paradigmas para a arte, ou ao menos apresentar caminhos alternativos, a atualidade fagocitou todos eles, criando um multiverso estético, político e poético, pautado pelo entrecruzamento, pela hibridização, pela diluição de fronteiras, pela crise do sujeito e do objeto, do significado e do significante. Desde Einstein, é impossível conceber o tempo, a ação e o espaço como algo linear, preso à lógica da causa e efeito e do futuro inexorável. Se ignoramos as ramificações, os loops, os paralelismos, a diversidade infinita, então só nos resta aceitar passivamente nossa experiência tão limitada e provinciana dentro de um pedaço frio de rocha perdido no Cosmo.
Mas voltemos ao Janela de Dramaturgia, um projeto exemplar, que surge em um momento mais que propício, a partir da percepção da falta de lugares em Belo Horizonte para fomentar a criação e o diálogo sobre dramaturgia. Um estímulo a novos autores e artistas, um ambiente aberto de troca, fruição e discussão. Não por acaso, as sessões mensais do Janela tem lotado a sede do Espanca! e alcançado crescente representatividade no cenário cultural da cidade. Mérito de seus idealizadores, Sara Pinheiro e Vinícius Souza, mas também dos autores/escrevedores/dramaturgos que se dispõem a apresentar textos no projeto. Sobre os textos apresentados: impossível agrupá-los em qualquer categoria. Impossível rotulá-los em conjunto. São tão diversos que eliminam qualquer chance de generalização. A LIBERDADE formal e discursiva talvez seja o único elo entre eles. O Janela é, portanto, um conjunto de janelas que se abrem para a rua, revelando interiores totalmente diferentes.
Para muitos artistas participantes, o projeto permite exercitar e exibir criações bastante pessoais e íntimas, que talvez não encontrem lugar em seus trabalhos artísticos cotidianos. No meu caso, ao escrever “Anã Marrom”, recorri a fragmentos esparsos escritos por mim em momentos e contextos diferentes, mas que já perseguiam um lugar que tentei alcançar neste texto. Há grande influência da prosa poética e narrativa, gêneros que tanto gosto e leio, mas o objetivo central foi escrever um texto (ou pré-texto) para a cena. Um exercício que começou na intimidade do meu quarto, se abriu para a entrada e colaboração da atriz Talita Braga que realizou a leitura comigo, e se escancarou para o público no momento da apresentação. Uma gênese individual para um fim coletivo, como costuma ocorrer em praticamente toda obra artística – o particular correndo para o todo.
O Janela de Dramaturgia reúne artistas de atuações e trajetórias bastante diferentes, porém todos mantém algum diálogo com a escrita para a cena. Eu tenho uma formação artística pautada em experiências genuinamente coletivas e compartilhadas que me permitem trabalhar como ator, dramaturgo, diretor e pesquisador de forma expandida. Cresci como artista em um ambiente COLETIVO, COM e PARA outras pessoas. Muito do que crio na minha intimidade é colocado na roda para ser reinterpretado, relido, reescrito, enfim, desconstruído, sem qualquer preciosismo ou protecionismo. Da mesma forma, aprendi a usar referências e dialogar com outras obras e artistas que admiro – como disse Grotowski, “ser um bom ladrão”. O texto que escrevi para o Janela é um texto para ser teatro, ainda que eu tenha me preocupado com a sua realização pré-cênica, para que pudesse ser fruído em uma leitura e tivesse valor também no papel, mesmo antes do palco.
Em geral, os textos que vem sendo apresentados no projeto nos levam (mais uma vez) a questionar a própria ideia do que seja ‘teatral’ e ‘dramatúrgico’, nos obrigando a flexibilizar e expandir nosso entendimento. A “well made play”, que consagrou grandes autores como Tchekhov e Ibsen, não pode ser uma referência unívoca para o que seja um texto teatral – na verdade, nunca foi e talvez nem tenha se prestado a isso. Ter mais ou menos diálogos, mais ou menos lirismo ou narração, presença ou não de personagens bem identificados, conflito, clímax, enfim, nada disso pode definir a ‘teatralidade’ de um texto. A dramaturgia que trabalha no limiar de gêneros, tensionando suas fronteiras, não é novidade, não é “coisa da geração contemporânea”, pelo contrário, é coisa velha, bem velha. Aliás, o próprio termo “contemporâneo” nos convida à reflexão. Podemos pensar o “contemporâneo” como um conceito TEMPORAL e não estético, como sugere Giorgio Agamben. Sou contemporâneo na medida em que busco viver o meu tempo presente, em contato com os que estão à minha volta habitando a “fratura do Tempo”. Nosso caminhar não é somente um andar para frente, mas “um passo suspenso”.
Se o Janela de Dramaturgia se assume como um espaço para a criação “contemporânea”, é com a consciência de que o “contemporâneo” não é o fetiche pelo novo, nem a pretensão ingênua pela “vanguarda”. Não percebo isso em nenhum dos textos que vi sendo apresentados no projeto. Pelo contrário, vejo artistas tentando criar, dialogar, abrir suas gavetas, suas janelas, e trocar suas intimidades e desejos, habitar lugares outros e os lugares dos outros. Estamos experimentando juntos, e não ‘ditando uma tendência’ (expressão muito brega, por sinal), pois não há tendência.
Number 8, de Jackson Pollock. A obra de Pollock é um prolongamento do seu gesto interior. Sua action painting é totalmente liberta de esquemas prévios. |
Neste contexto, é impossível defender em nosso tempo um “dramaturgo de ofício” sem cair em uma concepção empoeirada, tecnocrata, ligada a um purismo reacionário e surdo ao que acontece à nossa volta. A dramaturgia não deve ser privilégio de “especialistas”, assim como o texto teatral não deve obedecer a nada que não seja o desejo criativo do autor. Se irá ou não funcionar em cena, só o acontecimento cênico provará. Como também diz Sarrazac, “teatral é o que QUER e PODE SER teatro”, esse desejo de ser teatro vai muito além da estrutura formal do gênero, se liga à LINGUAGEM, à ORALIDADE, ao RITMO, à PERFORMATIVIDADE da palavra. Toda escrita que inscreve uma subjetividade requer essa abordagem. O texto teatral superou em muito qualquer estrutura ou modelo – superou a si mesmo – e vem provando isso há mais de um século através de experiências mais ou menos bem sucedidas.
Finalizo com trechos da fala do dramaturgo inglês Harold Pinter proferida em uma conferência de 1962, totalmente atual e conveniente para o momento:
“Não sou um teórico. Não sou um comentador confiável nem uma autoridade para falar da cena dramática, da cena social ou de qualquer cena. Escrevo peças, quando consigo, e isto é tudo. […] O teatro é uma atividade pública, enorme. Escrever é, para mim, uma atividade completamente privada, se trate de um poema ou de uma peça, tanto faz. Estes aspectos não são fáceis de conciliar. […] O que eu escrevo não tem obrigação diante de nada, a não ser diante de si mesmo. Minha responsabilidade não é com o público, críticos, produtores, diretores, atores ou meus colegas em geral, senão para com a peça nas mãos, simplesmente. […] Quanto mais aguda é a experiência, menos articulada é sua expressão. […] Há uma considerável quantidade de gente neste exato momento que reclama que algum tipo de compromisso claro e sensato seja revelado sem lugar para dúvidas nas peças contemporâneas. […] Mas o mundo está cheio de toda classe de autores, e eles podem seguir qualquer rumo sem que eu me converta em seu censor. Propagar uma guerra falseada entre hipotéticas escolas de autores não me parece um passatempo muito produtivo. […]” (Pinter, 2005).
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FONTES:
FONTES:
PINTER, HAROLD. La fiesta de cumplaños. La habitación. Um leve dolor. El Blanco y Negro. El examen. Tradução de Rafael Spregelburd. Ed. Losada. Buenos Aires, 2005.
SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Tradução: André Telles. Ed. Cosac Naify. São Paulo, 2012.
* A crítica a qual o autor se refere no início do texto pode ser lida aqui.
O texto do Coletta devia ser lido e comentado por muita gente que senta em cima de um tipo de obra (válida, sim) e fica apontando, talvez até carimbando, outras peças, outros textos teatrais indicando: Isto é teatro! Isto não é teatro! Isto é teatro! Isto não é teatro! Não é teatro! Não é teatro! Coletta cita Harold Pinter: Mas o mundo está cheio de toda classe de autores, e eles podem seguir qualquer rumo sem que eu me converta em seu censor. Propagar uma guerra falseada entre hipotéticas escolas de autores não me parece um passatempo muito produtivo. […]” (Pinter, 2005).
Belo texto para reflexão. E belo texto para nos ensinar a pensar. ROGÉRIO VIANA – Curitiba – PR
O texto do Coletta devia ser lido e comentado por muita gente que senta em cima de um tipo de obra (válida, sim) e fica apontando, talvez até carimbando, outras peças, outros textos teatrais indicando: Isto é teatro! Isto não é teatro! Isto é teatro! Isto não é teatro! Não é teatro! Não é teatro! Coletta cita Harold Pinter: Mas o mundo está cheio de toda classe de autores, e eles podem seguir qualquer rumo sem que eu me converta em seu censor. Propagar uma guerra falseada entre hipotéticas escolas de autores não me parece um passatempo muito produtivo. […]” (Pinter, 2005).
Belo texto para reflexão. E belo texto para nos ensinar a pensar. ROGÉRIO VIANA – Curitiba – PR