por Luciana Romagnolli
“Viúva, porém Honesta”. Foto de Danilo Galvão. |
Desprendidos das verdades e absolutismos fixados pelo vasto repertório de reflexão crítica sobre as obras desses dois autores, tanto “Viúva, Porém Honesta”, do Magiluth (PE), quanto “Vazio É o que Não Falta, Miranda”, do Teatro Inominável (RJ), carregam um entendimento profundo do que é o essencial nesses escritores – ou, ao menos, do que é essencial para cada um dos grupos na relação com esses escritos. Além disso, ambos fazem da apresentação um momento de jogo no qual a representação é apenas um dos procedimentos possíveis; o endereçamento das falas e ações à plateia valoriza o encontro; e os personagens são coadjuvantes em meio à relação mais ampla que se estabelece entre atores, diretor e público.
A presença do diretor em cena, aliás, é sintomática do aspecto de construção. Seja operando luz e som, como um olhar de fora que em momentos específicos entra realmente no jogo, como Pedro Vilela faz em “Viúva”, representando o padre ou tirando a roupa; seja interferindo de fato no desenvolvimento da cena com direcionamentos às atrizes de acordo com cada apresentação, como faz Diogo Liberano em “…Miranda”, a presença criadora do diretor se materializa como uma interferência visível para o espectador. O fazer eleva-se a primeiro plano e as escolhas se denunciam enquanto escolhas.
Assim, abandona-se a ideia de peça benfeita e a ilusão de reprodução da vida, tal qual se ambicionava no drama clássico com uma história verossímil que comovesse à medida que nela se embarcasse esquecendo seu caráter ficcional. Se há indistinção entre teatro e vida, aqui, ela se dá no modo como o teatro se constrói como uma atividade de seres viventes elaborando ficcionalmente o real num espaço de convívio e liberdade criativa.
Nos dois espetáculos, reage-se com liberdade e leviandade às amarras culturais. O desrespeito é um valor imprescindível. Os atores são, afinal, indivíduos diante de uma obra, dela independentes. E irreverentes, porque despojados de reverência tolhedora.
O Magiluth investe, então, na subversão do moralismo. Qual outra abordagem mais justa à “farsa irresponsável” escrita por Nelson Rodrigues contra o puritanismo, a crítica, a imprensa, a psicanálise e a família, em resposta às manifestações da opinião pública sobre sua peça anterior, “Perdoa-me por Me Traíres”? Permissividade: eis a atitude cênica com a qual reagem os atores recifenses, à sua vez, ao contarem a história de um pai em busca de um pretendente para seduzir sua filha porque ela (simbolicamente) se recusa a se sentar após a morte do marido.
Despudoradamente, eles manejam o texto, o sexo e o escracho. Voam batatas chips, surgem um Senhor Batata, bonequinhas nuas e demais objetos prontos a surpreender e a fazer rir, mesmo que apelando a um senso de humor digno da “turma do fundão da quinta-série”, por assim dizer. No jogo proposto pelo Magiluth, o desbunde é permitido. O excesso e a piada ruim, também. E por que não seriam, se o alvo são justamente as instituições e tradições que atuam como censoras sobre a conduta alheia, donas do certo e do errado?
A desobediência no espetáculo não é menos que política. E seu potencial de afetação se eleva na medida da energia desprendida pelo grupo de atores – cabe dizer, todos homens e jocosamente oscilantes entre as explosões de testosterona e de feminilidade. Em alta voltagem e ritmo intenso – e entendendo o teatro como um jogo de ação e representação pactuado com os espectadores; falso como os pilares morais da sociedade de que debocha, porém capaz de desnudá-los aos olhos do público -, o Magiluth faz com que as provocações de “Viúva, Porém Honesta” atinjam, afiadas a carne do nosso bom gosto e bom senso.
“Como a morte, a indecidibilidade, o que chamo também de ‘destinerrância’, a possibilidade para um gesto de não chegar ao destino, é a condição do movimento de desejo, que de outra forma morreria antes do tempo”.
Em “Vazio É o que não Falta, Miranda”, o permissivo jogo com estímulos oriundos do universo beckttiano se torna possível a partir do sepultamento de “Esperando Godot”, encenado pelas quatro atrizes sob as vistas do diretor, também em cena. A leitura de uma sinopse falseada da peça escrita em 1952 já aponta para a infidelidade adotada como conduta pelo Teatro Inominável. Uma vez que foi descartada a origem e o fim tampouco é pretendido, importam o meio e seus rizomas: o processo.
“Miranda”, afinal, se configura como um antiespetáculo, forjado nos vazios e nas falhas de uma pretensa montagem da peça, que, à semelhança de Godot, nunca chega a se realizar. Assim, lança-se à distinerrância de desejos postos em movimento, ainda que nunca alcancem o que se pressuporia como destino. Cobrar-lhe os contornos de um espetáculo benfeito, resultados mais satisfatórios ou que faça algum sentido é negar-se a fruir a experiência proposta pelo grupo.
A fidelidade a Beckett reside justamente no modo radical como as questões por ele impressas na linguagem e na estrutura textual de Esperando Godot são experimentadas dramaturgicamente, isto é, de modo estruturante dos sentidos e afetações, na composição da cena.
A experiência de expectação de três apresentações permite, primeiramente, desfazer impressões iniciais sobre o que é representação, o que é acaso e o que é improviso, e perceber a desenvoltura das atrizes para transitar entre essas categorias. As quatro cumprem uma gama de jogos dos quais menos importa os resultados do que a falta de lógica inerente à espera que protagonizam – ou que o público protagoniza diante delas.
Há uma espinha de ações repetidas diariamente, mas sujeitas a uma ampla margem de improvisação, seguindo os humores delas mesmas, do diretor e do público. O improviso como técnica de criação teatral alcança estatuto pouco visto, retrabalhando dia a dia a matéria polissêmica do espetáculo, sensível aos estímulos e fluxos do instante. Assim, ata-se o momento de criação ao do encontro com os espectadores, e caberá a estes se deixar afetar e fazer sua própria leitura dos acontecimentos.
A direção de Liberano valoriza surtos individuais dele e das atrizes, expondo o frágil e o patético de cada um. E, se o diretor reage com veemência aos excessivos apelos cômicos de uma delas para render o público, é ele também quem continua a permiti-los a cada apresentação. O humor, afinal, é a estratégia de adesão em meio aos destroços de narrativa. Em algumas ocasiões, pode-se perder a medida e as complexas linhas de ação empregadas no espetáculo se diluem sob a comédia ligeira, na tentativa de manter a plateia entretida. Mas qual a medida? Experimentar diariamente. Correr o risco.
O que está posto em dúvida, enfim, é a própria noção de dar (ou não) certo, deslocando o foco para o processo. Tal qual uma redenção do grotesco perante o sublime, o Inominável realiza uma redenção do desacerto, do descuido, do deslize, do desvio, do equívoco, da falha, da falta, da imprecisão, da impropriedade, da incorreção e do desatino, mas também da tentativa, como inescapáveis à vida e à arte.
Liberto da lógica positivista ou mercadológica, se “Miranda” atinge algo de sublime em seus desfoques, é por restituir à vida o valor da experiência e da imperfeição. Como melhor escreveu Soraya Belusi: trata-se, aqui, não só da arte, mas também da existência como processo. Irresistivelmente incompleta e insatisfatória, uma provocativa disposição a estar vivo.