– por ana luisa santos –
[Foto de capa da postagem: imagem de Luiza Palhares, OUTRAS VINGANÇAS: LABORATÓRIO DE PERFORMANCE PARA DRAMATURGIA. Link: https://anasantosnovo.com/ATIVIDADES-PEDAGOGICAS ].
belo horizonte, janeiro de 2022.
“Vou dar um exemplo pessoal: considerado a poesia como um dos componentes mais importantes da existência humana, não tanto como valor, mas como elemento funcional. Deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas. ‘Atenção, cara, na tua idade, se você não tomar poesia, não vai ter jeito…’. (…) É um pouco em função disso que conduzo minhas estratégias. O que fazer, em tal contexto, com tal pessoa ou com tal grupo, para que se tenha uma relação tão criadora quanto possível com a situação que se está vivendo – como um músico com sua música ou um pintor com sua pintura? Uma cura seria como construir uma obra de arte, com a diferença de que seria preciso reinventar, a cada vez, a forma de arte que se vai usar”. Félix Guatarri. 26/08/1982
segunda tentativa
a dificuldade é intensa – concentrar, concatenar ideias, conseguir parar de pensar um pouco na sequela cerebral da variante gamma que experimentei na segunda onda sem vacina no primeiro semestre de 2021, conquistar mais um momento de relação aberta com o celular, considerar fortemente o desejo de diálogo apesar de toda a tristeza e indignação, continuar sustentando a suspensão sem deixar de imaginar o chão…
escrevo há dias, diariamente, desde o final de 2019, um pouco antes da pandemia, “crônicas do mosteiro com wi-fi”[1] – uma espécie de diário em fichas. escrevo para treinar, encostar nas palavras, tentar expressar, não enlouquecer demais, registrar alguns momentos na dimensão do tempo alucinante dos últimos cinco ou seis anos.
testemunhei pouquíssimas obras de arte viva ou arte da presença nos últimos dois anos. articulei experiências audiovisuais, textuais – em papel e som – mas sobretudo em telas eletrônicas. uma das coisas que eu mais faço durante o dia é colocar o celular para carregar.
continuo fazendo crítica, não sei como. imagino, por exemplo, escrever um texto a partir de “estupidez”[2], vídeo de maria homem em seu canal de youtube. a crítica é principalmente buscar uma saída para não amargurar e, claramente, buscar compreender que a mudança já está compondo outros lugares. nem tudo é sobre você. e por isso às vezes é um pouco difícil pensar como escrever – na crítica é possível sair, deixar o espaço, ir para outra dimensão, olhar de outro ponto de vista – e, geralmente, em conjunto. a crítica como presença compartilhada, mesmo no digital, mesmo como “vala comum[3]” em outro contexto.
fui acolhida pela escola livre de artes – arena da cultura[4], de belo horizonte. não consigo atuar nas “redes sociais” da internet e utilizo as plataformas basicamente para troca de mensagens. estou impressionada com a “happycracia”[5] de eva ilouz e a “sociedade autofágica”[6].
ainda é sobre o fim, mesmo que seja o fim de um pesadelo, o fim de uma pandemia – e lembra o “pósfacio”[7] publicado no horizonte da cena em 2019, antes da pandemia. parece que tem alguma coisa de “um depois ainda sem nome”[8] – uma pesquisa sobre o aplauso. desdobramentos no “núcleo de pesquisa sobre o cansaço e outras heresias afetivas”[9].
tem um tempo, antes ou depois da performance, do ato de performar artisticamente, que altera a sensação da proposta como uma atualização aberta do encontro, do acontecimento. algumas artistas podem considerar a necessidade de concentração ou de retorno, antes ou depois da ação, para equalizar o tipo de vibração que o corpo experimenta. o estado de suspensão da condição atual em 2022 prolonga esse tempo que o corpo pede, antes ou depois, abrindo a reflexão[10].
os textos espalhados, aquela confusão, uma dificuldade de editar. como articula? a imagem – onde? em muitos lugares, em muitos perfis, em muitas aulas. onde está a imagem no trabalho? a cerca de[11].
não escrevo mais como antes, pelo menos por enquanto. o texto me pede outro tipo de jogo power point. um slide que consiga transmitir meu apreço profundo pelo tipo de experiência aberta da manifestação artística, da expressão sensível, da criação, da decifração de novos estados. quem sabe, decantar[12] – eu ouvi essa palavra em uma entrevista – o sólido, o líquido ou o processo?
tentativa anterior
praticar a leitura, constantemente, e na medida do possível. escrever como um dia é na prática. continuar se espantando. espalhar. ampliar o que pode ser manifestação de arte ou prática artística. ser profissionalmente sensível. criticar a vida – e a morte – e o que pode ser, deixar de ser, ser demais. cuidar dos sentidos diversos sensoriais e simbólicos. desapegar de conceitos. abrir para a experiência. cavar, cavar muito por algum tipo de experiência. guardar o silêncio. lembrar, mesmo que seja para esquecer, de novo. errar diferentemente. criar outro texto, sinopse, dramaturgia em diálogo. permitir a entrega. sonhar com o encontro. aceitar a mudança. sentir falta. tirar a roupa. desaparecer. seguir estudando. desejar a escuta, a prática da escuta. honrar o testemunho. brindar o agora. tentar o imaginar o mundo sortido e impermanente. amar o mundo. gostar de fazer junto. ouvir o gesto. abrir mão. redigir esquisito. furar a bolha. contaminar a língua. usar outras lentes. não gostar mas amar o incômodo. esquecer o próprio nome. intuir na fila. esperar um pouco. considerar o depois e o durante, saborear o processo. tentar traduzir. correr riscos, fugir dos sulcos. repetir a letra com outra caligrafia. experimentar outra fonte. anotar à mão. estranhar o texto. desencantar os hinos. desconhecer. desiludir. desalinhar. não saber. falhar, ter dificuldade de aproximar. pedir licença. ir junto e ver o que acontece (ou não) nessa situação. chorar. não conseguir dormir, não conseguir falar. sacar o perigo. jogar com o mistério. sonhar dormindo. recusar. esconder. criar frestas de segredo. ficar perto. achar extraordinário. vibrar com o espaço. indeterminar.
outra tentativa
a articulação dessa colaboração com o horizonte da cena – embora tenha se iniciado antes – começou em 2019, quando retornei de são paulo para belo horizonte, como um acolhimento, da parte do grupo, e uma busca, de minha parte, no sentido de tentar formalizar uma prática contínua – e de algum modo, dispersa ou diversificada no âmbito da prática artística.
essa experiência de testemunhar manifestações artísticas constituiu uma das primeiras ações sensíveis de que me lembro permitir realizar, no contexto repressor patriarcal-religioso em que cresci, no âmbito familiar – e a dimensão de êxtase e transformação-experimentação durante a fruição me moveram da leitura, da pesquisa e do jornalismo (sem, no entanto abandoná-las como práticas diárias) para a produção (gestão) cultural e, posteriormente, para a produção artística.
os trabalhos de criação são atravessados pela textura da palavra, no campo de arte da performance, de diferentes modos – como títulos e sinopses, dramaturgias, palestras-performances, registros e críticas, além do exercício literário mais amplo, poético[13].
a crítica vem desse desejo de continuar escrevendo a partir de experiências (e) (de) encontros em torno de expressões sensíveis, processos de criação, conversas, debates. a prática crítica ora assume um formato de convites específicos, ora busca dialogar com trabalhos também como desdobramentos do testemunho de seus percursos de produção.
como demais e inúmeras e diversas práticas artísticas, a crítica está diante de um desafio de linguagem – e viabilidade – muito profundo. comentar, repercutir, reverberar, relacionar características, condições, situações e procedimentos de apresentação/realização de trabalhos culturais torna-se um procedimento de pesquisa e articulação do pensamento artístico em suas múltiplas possibilidades de elaboração sensorial, histórica, emocional, semiótica e política. criticar – pensar e sentir junto – pode ser um passo interessante de invenção de um espaço de conversa, que dá sequência ao sentido de partilha do sensível. mover o sentido, o sensível, em várias direções, observá-lo do avesso, pode ser uma iniciativa interessante de dar continuidade ao jogo aberto, elástico da linguagem e do simbólico que a arte – ou a poesia – propõem.
como as demais práticas artísticas, curatoriais investigativas e filosóficas, a crítica se deslocou de um tipo de espaço específico, migrando para outras artículações. o exercício do retorno inicial a partir da audiência ou assistência de um filme, de uma obra audiovisual, ou a partir da leitura de um livro, tornou-se um tipo de conteúdo relativamente comum encontrado na internet hoje, por exemplo. não sei se todas as possibilidades desse formato de análise ou apreciação consideram-se como críticas. inclusive, há duas palavras diferentes nesse âmbito que são “react” e “spoiler” – ou a presença de informações cruciais para a compreensão do roteiro ou dos recursos de finalização narrativa da obra – que às vezes pode funcionar como uma etiqueta para a decisão da audiência de ter “acesso” ou contato com dados específicos da obra que podem – ou não – influenciar no ritmo de descoberta ou fruição mais “direta” do material artístico.
de tantas formas diferentes, “fala-se” muito de uma prática de fruição, geralmente, individual, tantas vezes, não presencial, não situacional, e também, resumidamente, avaliativa, no sentido da “indicação”: “vale a pena ver esse filme e por quê?”
para a prática crítica escrita, também presente na internet, através de sites como o horizonte da cena, podemos imaginar como o processo de elaboração funciona de forma mais cadenciada, em que a experiência de autoria e curadoria da fruição – e de sua tentativa de tradução – são compartilhadas de diferentes maneiras.
a partir desse processo conjunto, surgem múltiplas entradas, vozes e leituras, que podem remeter mais diretamente às obras artísticas com quem se abrem para dialogar, mas podem também tentar ampliá-las ou ressaltar suas frestas, criando fricções – por vezes, ficções – com ainda outras referências, experiências ou mesmo linguagens. a um tipo de pergunta – válida, diga-se de passagem – como “vale a pena ver esse filme ou essa peça de teatro?” – somam-se outras perguntas anteriores e posteriores (mesmo porque, fora da internet, muitas vezes, não é possível repetir a “temporada”). aqui o tempo é material de invenção, mas também rastro de experiência: “quão interessante pode ser a vivência de fruição de uma manifestação artística?” ou “o que está em jogo diante desse tipo de atenção ligada à fruição?” são espécies de dedicação, mobilização, comoção, implicação, presença e entrega, ligadas à fruição, que podem ter durações muito amplas e características diversas no curso de uma vida humana – mas também para além dela, atravessando gerações, espaços e eras.
esse processo de elaboração crítica pode ter relação também com um tipo de perda – e trabalho de luto – como continuidade ou desdobramento daquele encontro com a obra, especialmente no caso de obras artísticas coletivamente presenciais, mas não só do ponto de vista da característica da reprodutibilidade técnica, mas por uma dimensão sensível, fisiológica e social que é sempre circunstancial e um pouco específica, mesmo que na internet, a plataforma, geralmente, permite o “acesso” quantas vezes for solicitado.
esse processo de elaboração pode ser também um procedimento de germinação (se permitir a fecundação-criação[14]) a partir do contato com determinados materiais sensíveis que podem provocar um tipo de vibração – que pode se repetir, eventualmente, pode se acumular (e repercutir), mas que não deixa de abrir um traço de acontecimento singular – revelação ou descoberta autêntica – de sensação ou sentimento ou ideia ou aprendizagem ou experiência da diferença como possibilidade do corte da repetição. O procedimento da crítica, o exercício da fruição como trabalhos de criação e de curadoria, são sempre inaugurais. A curiosidade em torno desse tipo de encontro é ingrediente interessante nesse processo que é mais de sabor do que de saber.
profissionalmente, como praticante de crítica, o desejo que atravessa os procedimentos a que, até o momento, busco mobilizar, está relacionado com a tentativa singela de anotar alguns sinais do que é, objetivamente, indecifrável – como exercício do enigma que treme – porque também próximo do estado inconsciente no processo de transmutação com a expressão artística. e tentar imaginar o que esses sinais podem indicar ou costurar de outros materiais simbólicos e sociais, sempre como uma aposta delicada de articulação, sempre parcial, não definitiva e, se possível, historicamente informada. pensar junto, a partir e com a experiência antes, durante e depois do estado de fruição, ouvindo, tentando ouvir muitas possibilidades de leitura e/ou composição. mas, geralmente, também fazendo uma escolha – sempre difícil, desafiadora – de uma trajetória provisória para buscar se aproximar do trabalho, da obra, da proposta, da situação – e, às vezes, ao mesmo tempo, criando uma distância, como uma visão panorâmica, em que o micro e o macro, como uma dança, podem se confundir, se contaminar.
pode ser interessante analisar ou reparar as condições de produção, de fruição – para além das iniciativas em si de criação – o contexto em torno e por dentro da obra – os processos de realização, comunicação, compartilhamento – por si só hoje muito confusos na dimensão de uma sobreposição de texturas entre o que pode ser trabalho, divulgação, registro, atualização de perfil ou estado, obra, intervenção ou comércio. nada de novo no espectro de discussões no campo da história da arte e do mercado de arte[15], mas com uma ampliação de complexidade e variedade – e velocidade – consideráveis, inclusive no que diz respeito ao que poderíamos denominar como “fruição”. rolar a barra é fruição? talvez, talvez seja um tipo de televisão com centenas, milhares de programas televisivos, intercalados por propagandas, peças publicitárias, intervalos comerciais a cada três ou quatro “quadros”. a diferença entre interação ou engajamento e composição pode ser interessante de se pensar. e a escolha do que ver, a curadoria e a coragem de sentir podem ser férteis de imaginar.
são escolhas – mais uma vez, sempre difíceis, desafiadoras – e feitas geralmente em determinadas condições. a escolha filosófica de tentativa de contribuição para a (trans)formação de um segmento de conhecimento como o campo artístico ou poético – é uma possibilidade da crítica – e seus arquivos, como os livros, plataformas ou outros materiais de imantação – são registros abertos assim como as obras: seguem e voltam e avançam no tempo como no corpo e no desejo como convites, lembretes, chaves, charadas e apostas para quem percebe a vontade de seguir jogando no comum o enigma.
p.s:
como prática crítica, o processo de criação mergulha hoje como os efeitos da guerra híbrida e uma sensação de choque, medo e terror coincidentes com o capitalismo de desastre. continuar a pensar através de inúmeras experiências traumáticas – particulares e coletivas – constitui uma tarefa para além da linguagem.
é a experiência da vida mesmo – sempre incomensurável, sempre misteriosa – que é atingida, como público-alvo.
sentir a dor, a tristeza, o luto – o ataque às diversas articulações artísticas e culturais – o espanto diante do triunfo do delírio mais mortífero impele o desejo a imaginar – e valorizar – outras formas de alteração da consciência – como no signo poético – em que a dobra do sentido produz mais possibilidade e diferença do que fechamento, sufoco.é na expansão do espaço de pensamento e sentimento, com respeito pela vida, que pode se encontrar o ritual artístico. o gesto simples de estar junto para apreciar, para contemplar, para compor – e não para aniquilar – que pode acolher o coração, no momento, apertado entre a angústia e o desespero. o gesto simples que canta, que decanta, que (se) encanta, que mobiliza o corpo e lembra a alma outras frequências de vibração – e metamorfose – no tempo, no espaço, no laço e nas espécies.
p.s.2
“A análise dos caminhos e descaminhos do desejo na sociedade brasileira encontram na obra de Nelson Rodrigues um prato cheio. Ninguém melhor do que ele e com igual senso de humor apreendeu as nuanças da família de classe média dos anos 50, seu perfil e sua miséria – perfil e miséria que se mantém ainda hoje, apesar e através das intensas mudanças que marcam estas três décadas, o que confere à sua obra grande atualidade. Seu texto destila uma sensibilidade privilegiada para captar, no plano molar, a rigidez com que se conservam as formas sociais vigentes, mesmo quando totalmente desatualizadas; o plano molecular, o imperceptível movimento de partículas solapando tudo, diluindo todos os contornos; e entre os dois planos, a ausência total de trânsito, a tensão de uma polaridade, desembocando necessariamente numa destruição irreversível. As partículas, que o intenso movimento no plano molecular não pára de agitar, nunca chegam a se articular em novas formas sociais. Nunca se constituem novos territórios de desejo. A família implode. Mas um além da família é impensável. ‘Família ou morte!’ é o lema deste tipo de subjetividade que podemos extrair dos textos de Nelson Rodrigues.”
(Suely Rolnik em trecho de “Nelson Rodrigues ou a arte sutil de um esquizonalista”, também de 1982, assim como a citação que abre este texto, ambos registrados no livro “Micropolítica: cartografias do desejo”, edição de 2008).
[1] https://anasantosnovo.com/.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=aHxekaG2Ua8.
[3] https://letras.cidadescriativas.org.br/2021/06/26/vala-comum/.
[4] https://prefeitura.pbh.gov.br/fundacao-municipal-de-cultura/escola-livre-de-artes.
[5] https://www.academia.edu/39317368/Edgar_Cabanas_y_Eva_Illouz_Happycracia.
[6] https://pt.scribd.com/book/544458138/A-sociedade-autofagica-capitalismo-desmesura-e-autodestruicao.
[7] https://www.horizontedacena.com/pos-facil/.
[8] https://umdepoisaindasemnome.blogspot.com/2020/02/uma-cronica-do-cuidado-ou-por-uma.html.
[9] https://anasantosnovo.com/NUCLEO-DE-ESTUDOS-SOBRE-O-CANSACO-E-OUTRAS-HERESIAS-AFETIVAS.
[10] https://www.youtube.com/watch?v=vyJuYHSsK9g.
[11] https://drive.google.com/drive/folders/1XQhamjF5LVMSv5VB-_6zuTOIuSF-kWsR.
[12] https://www.dicio.com.br/decantar/.
[13] https://anasantosnovo.com/TEXTOS-DA-ARTISTA.
[14] https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/estadodearte.pdf.
[15] https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4113494/mod_resource/content/0/A_estetizacao_do_mundo_-_Lipovetsky_Gilles.pdf