por Luciana Romagnolli::
É raro que adultos se voltem à infância com um olhar sério e questionador, mas sem menosprezo, para recuperar a sensação íntima do que significa ter apenas uma década de vida e todas as dúvidas do mundo sobre o que é (e será) viver. “Materia Prima”, espetáculo do grupo espanhol La Tristura, transita por tempos passado e presente da biografia humana sem se fixar, sugerindo que, por certo aspecto, as idades talvez não sejam tão apartadas entre si. Na consciência infantil, reside a projeção do adulto que se virá a ser, enquanto se busca dar forma e sentido ao mundo ao redor, sem poder acessá-lo de todo. Na adulta, sobrevive o espectro da criança que projetava para si um futuro e da qual restam expectativas e reações emocionais difíceis de serem abandonadas.
Os corpos dos atores revelam seus 13 anos, enquanto seus gestos oscilam entre ações infantis e pretensamente adultas – estas, mais sugeridas do que realizadas, uma opção que poderia gerar efeito mais perturbador ao desestabilizar a noção matemática (pela idade) de definição de um indivíduo. Ao mesmo tempo, os discursos proferidos pelos garotos e garotas e o projetado em texto na parede de fundo também se deslocam pelas fases do amadurecimento. Essa instabilidade gera uma imprecisão a respeito do que se vê, como a sugerir uma indagação sobre o que permanece do adulto na criança e da criança no adulto.
A presença dos quatro jovens atores é força-motriz do espetáculo. Eles falam diretamente para o público como quem compartilha uma experiência, gerando a sensação de real, intensificada pelo incomum de se ver atores tão jovens em uma cena performática. Mesmo entre escorregões aparentemente não programados (mas passíveis de serem incorporados à dramaturgia), os quatro passam segurança em suas ações e palavras. E inauguram um enigma existencial que relaciona identidade e idade. Um dos questionamentos latentes diz respeito ao que permanece intocável no indivíduo durante o percurso de uma vida, se tantas identidades distintas são assumidas em espaços e tempos variantes. Eliane Brum, em sua escrita, costuma colocar a construção de uma autonarrativa para o eu como operação de unificação de uma identidade que em si não é una. E o que se perde quando se perde a experiência do olhar infantil sobre o mundo? Seria possível acumulá-lo ao olhar adulto, permitindo que gerem tensões?
Poucos elementos constituem a beleza do quadro cênico que se forma diante do espectador de “Materia Prima”: uma cama com cobertas, uma mesa. Sobre elas, o brilho da luz branca atravessa a sala do teatro para projetar frases sobre o fundo preto do palco, e, com a música emocional, cria uma espécie de aura mística. Contudo, a sensibilidade que se instaura pode remeter também à estética publicitária, em sua excessiva limpeza e na profusão de frases de efeito, algumas com maior profundidade existencial, outras esvaziadas.
A arte tem mostrado quão delicado é adentrar o território existencial sem alguma medida de pieguice ou inocência. “A Árvore da Vida”, filme de Terrence Malick, é dessas obras que sobrevivem sobre tal corda-bamba. “Materia Prima”, a seu modo, também. Talvez porque o tema exponha a pequenez e o patético do humano: a criança sem respostas que não deixamos de carregar, quando adultos nos tornamos, diante da vida sempre enigmática. Resta o silêncio da imagem fixada dos rostos desses garotos, a presença aurática deles, de quem só podemos intuir pelo que o futuro tornará.