Foi longo o caminho de “Prazer” até tornar-se o espetáculo visto na reabertura do Teatro Francisco Nunes. Ainda em 2012, uma semana antes da estreia em São Paulo, a Cia. Luna Lunera convidou algumas pessoas (entre elas, jornalistas) para assistirem ao ensaio geral e, ao fim, partilhar abertamente suas percepções. As sugestões e críticas foram ouvidas e consideradas, no desejo por amadurecer a dramaturgia e potencializar o acontecimento de encontro com o público.
Àquela altura, a cena inicial era outra e o desenvolvimento do espetáculo, confuso. As histórias individuais dos personagens estavam menos delineadas, havia elementos redundantes e outros abruptos. Sem furtar-se ao desafio de continuar o processo de criação mesmo após a estreia, entre 2012 e 2013, a Cia. Luna Lunera modificou cenas, reescreveu textos, reordenou tempos até conquistar uma trama delicada de linguagens poéticas, sonoras e visuais.
Clarice Lispector e seu “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” sobreviveu como desejo a pairar sobre a encenação, modelo para alguns personagens e linhas de fuga, na forma de frases transformadas em aforismos e marcadas a giz sobre as paredes. Em cena, vemos quatro amigos em crises identitárias particulares, que atingem autoimagem, profissão, família, amor e morte. Mesmo carregados de angústias, eles tentam estabelecer entre si um convívio no qual a alegria seja possível. Para isso, armam uma intimidade fraterna, fissurada por irritações e não-ditos com os quais uma amizade também se forja.
O espectador é contaminado por esses afetos e instado a compor um quadro mais amplo de sentidos, cruzando as palavras pulsantes de Clarice Lispector a simbolismos como a efemeridade do desenho a giz e o traçado do contorno do corpo, que delimita o ser e remete à sua condição futura de cadáver; às músicas (sobretudo do Los Hermanos) que criam ambiências emocionais; à refeição e seus odores como momentos de partilha; à movimentação coreográfica dos corpos, que contraria o realismo dos diálogos cotidianos (já desfeito pelo tempo não-linear) e reforça uma camada subjetiva de percepção das individualidades.
Ao encontro coletivo, interpõem-se as histórias particulares, às quais a dramaturgia dá tempo de silêncio, observação, maturamento, revelando-as aos poucos. Persiste certa irregularidade entre as quatro, e embora – por exemplo – o segredo em torno da ausência de Laura já tenha ganhado sutileza desde o ensaio geral, ainda parece anunciado mais do que o suficiente para a compreensão e comoção do público.
Osório e Isadora (personagens de Odilon Esteves e Isabela Paes) apresentam dramas complexos de descontentamento com o universo interior e exterior – o dela, um movimento reflexivo de olhar para a própria imagem e para seu modo de agir sobre o mundo com estranhamento, de modo que o espectador é instigado a fazer o mesmo em relação a si (nesse ponto, coincide com questões sobre autoimagem, identidade e projeção do eu vistas em “LaborAtorial”, da Cia. dos Atores, numa versão mais performática).
Até hoje, a Cia. Luna Lunera é festejada por “Aqueles Dois”, pelo jogo claro e criativo que estabelecem, em termos de encenação, a partir do texto de Caio Fernando Abreu, fazendo com que os sentidos contidos nas palavras se desdobrem em imagens e ressoem no espaço. Com a licença de emprestar uma frase ouvida em “Prazer”, o que o grupo faz neste espetáculo é tentar uma coisa mais difícil. Tentar o convívio, tentar o afeto, tentar o gozo. Embalar uma dramaturgia que nasceu frágil para que cresça como um organismo vivo e complexo.
Penso se a maior ousadia está justamento no antiniilismo. Sem dispensar uma consciência crítica social e existencial, representada principalmente no personagem Osório (paradoxalmente, importante agente da comicidade no espetáculo), o grupo ecoa de Clarice a compreensão de que é preciso gozar “apesar de”. A música catártica e a dança mobilizadora contribuem para que palco e plateia atinjam uma comunhão, refletindo a que acontece em cena pelo entrosamento dos atores e a disposição a estarem juntos e fazer disso uma experiência real.
“Prazer” demanda a adesão do espectador: o deixar-se afetar. (Inclusive pela música clichê do Coldplay, por que não?) Mas é compreensível caso isto não ocorra. Permitir-se o prazer não é coisa simples em nossos dias.