– por Marcos Alexandre –
Crítica panorâmica a partir de trabalhos negros apresentados recentemente na cidade
Fotos de Pablo Bernardo
“O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.”
(Djamila Ribeiro, 2017, p. 640)
“Eu acho que a arte, ela deve ser um local de escape.”
(Ana Maria Gonçalves, segundaPRETA, 16/4/2018)
Pensar nos lugares identitários e discursivos do negro socialmente tem sido um dos aspectos discutidos no teatro negro contemporâneo em todas as suas instâncias e formas de representação, na dança, na dança-teatro, nos musicais, nos espetáculos ditos “tradicionais” e/ou “performativos”. Neste sentido, as propostas cênicas que têm tratado sobre o negro, por sua vez, têm trazido para os palcos um olhar comprometido, um olhar preto[i] para usar as palavras do dramaturgo, narrador e poeta, Alan da Rosa. Este “olhar preto” está enredado com uma série de interesses (lugares de fala e/ou posições ideológico-políticas) e subjetividades que perpassa o processo de construção de um texto espetacular.
É a partir desta premissa e deste contexto específico que Belo Horizonte se depara, mais um ano, com a movimentação da cena preta, demonstrando que as produções negras estão se consolidando, fortalecendo e se fazendo mais presentes no cenário artístico local. E é dentro desta onda preta que a cidade voltou a receber, no dia 24 de março, o espetáculo do Coletivo Negro, Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens. Desta vez, a montagem retorna na abertura do Palco Giratório 2018.
O espetáculo, com idealização, atuação, direção e dramaturgia de Jé Oliveira e a partir de partituras poéticas e sonoras, estabelece uma relação de cumplicidade e de constante interação com a plateia presente no Grande Teatro do SESC Palladium, composta por uma parcela expressiva de negros e negras. A peça traz para discussão o universo masculino a partir do ponto de vista interno de sujeitos negros. Durante o processo de construção espetacular, Jé Oliveira entrevistou 12 homens negros e, inspirado nas histórias e trajetórias, concebeu a dramaturgia. São eles: Akins Kintê, poeta e diretor de cinema; Allan da Rosa, autor, professor e artista; Aloysio Letra, artista; Fernando Alabê, músico; João Nascimento, percussionista; KlJay, DJ do Racionais MC’s; Melvin Santhana, músico; Renato Ihu, produtor e pesquisador; Salloma Salomão, artista e intelectual; Seu Luís Livreiro, vendedor de livros; Will Oliveira, modelo; e Zinho Trindade, poeta. O espetáculo presta um tributo ao Racionais MC’s.
Em cena, acompanhado por excelentes músicos que também integram o Coletivo Negro – Cássio Martins, Dj Wojtila, Fernando Alabê (diretor musical do grupo), Mauá Martins e Melvin Santhana –, o ator/persona traz para a cena fragmentos da história de um homem/personagem negro oriundo da periferia de São Paulo, sua relação com a morte em instâncias e presenças distintas até que este sujeito/personagem vai ao encontro de suas identidades, de sua cultura, da sua relação com a música e com a musicalidade (funk dos anos de 1970 e as letras potentes dos Racionais MC’s). Apesar de a peça retratar a construção de uma masculinidade negra em um lugar específico – a periferia de São Paulo, a construção identitária pode ser ampliada para outras enunciações brasileiras; referenciando, referendando e legitimando histórias e corporeidades de outros homens negros. Instrumentos, música, palavras e discursos do ator/persona são ressignificados em cena a todo o momento, reivindicando lugares de outros homens negros, o seu corpo amplifica o olhar e a presença latente desses sujeitos nas nossas sociedades. Dessa forma, seus questionamentos políticos, étnicos, éticos e raciais são colocados em circulação não só para serem vistos e ouvidos, mas, principalmente, para serem sentidos e espalhados com a palavra.
Muito da movimentação artística atual voltada para a cena preta na cidade se deve ao Projeto segundaPRETA, que estreou sua quarta temporada no dia 19 de março de 2018, desta vez homenageando a escritora mineira Ana Maria Gonçalves (autora consagrada pelo sucesso de sua obra Um defeito de cor, romance publicado em 2006 e Prêmio Casa de Las Américas de 2007) e continuando a mostrar a que veio. O projeto segue sendo levado a cabo por um grupo de negros e negras comprometido com as suas ideologias, identidades e, principalmente, com o seu tempo. Está claro que não se trata de um evento passageiro, uma vez que a sua continuidade está nas mãos de muitos: artistas, homens e mulheres que têm como objetivo comum discutirem os amplos lugares de fala da população negra na arte. Em sua 4ª temporada, a segundaPRETA, em realização no Teatro Espanca de 19 de março a 23 de abril, também tem recebido cenas de outros estados (são ao todo quinze cenas produzidas em cidades dos estados da Bahia, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), trabalhos politicamente engajados e que se dispõem a discutir vários temas relacionados aos pontos de vista internos da população negra: identidades, formas de segregação, racismo e preconceito, violência contra as corporeidades negras – principalmente em relação à mulher negra, à sexualidade, à expressividade e às afetividades, entre outros temas afins.
Como movimento artístico e político, a segundaPRETA continua promovendo reflexões sobre os trabalhos apresentados por meio de uma conversa realizada a partir da leitura das cenas, que é mediada por críticos pretos com os artistas e o público presente após cada dia de apresentação. Os debates permitem que atores, críticos convidados e plateia possam exercitar o diálogo e a escuta sobre cada trabalho, demonstrando como as cenas reverberam para além do espaço de representação, tocando, quase sempre, em aspectos que se relacionam com as vivências negras em nossa contemporaneidade. Todas estas reflexões têm sido documentadas e divulgadas nos “cadernosPRETO” e nas redes sociais, possibilitando, assim, a formação constante de público e leitores pretos. Desta temporada, entre os trabalhos apresentados, destaco brevemente os experimentos cênicos Endereço Postal, de Preto Amparo (BA/BH), O catador de risos, de Rodrigo Santos (BH), ambos apresentados no dia 19 de março; Olha o pesado aí, de Lucimélia Romão e Laura Cerqueira (São João del Rei), Sobre todos os dias, de Tatiana Henrique (RJ), apresentados no dia 26 de março; e Despejadas, do Grupo Nóis de Teatro (CE), apresentado no dia 9 de abril.
Endereço Postal e O catador de Risos abrem a temporada do Projeto e são trabalhos completamente distintos, mas que se conectam mediante a expansão das corporeidades dos atores que são trazidas para cena. Preto (Pedro) Amparo – não posso deixar de destacar que o ator assume a sua “negrura” ao seu próprio nome artístico – propõe um mapa geocorporal delineado por meio de nove laranjas e demarca parte do espaço. Tomando a fala para si e chamando para a cena o Outro, o ator performatiza o seu discurso e faz com que a plateia seja copartícipe de sua “despedida”, ou melhor, da despedida de um Outro que se configura com outras vozes negras. “Vocês estão tristes.”, repete inúmeras vezes Preto Amparo, dirigindo-se sempre ao público presente. Indiretamente, o que se observa em cena são discursos, ao mesmo tempo, incisivos e fugazes, como se representassem vozes abandonadas de diversas maneiras. Há uma cumplicidade entre o olhar do ator, seu corpo negro, vestido de terno negro e os referentes corpóreos e discursivos que são trazidos para o seu jogo cênico e comprometido com as palavras que buscam alcançar várias instâncias mnemônicas e identitárias. Por sua vez, na outra cena, Rodrigo Santos, em O catador de Risos, busca com o seu corpo negro fazer com que suas palavras possam alcançar outros lugares e espaços lacunares nas corporeidades das pessoas presentes. O ator-palhaço ressignifica o espaço externo ao Teatro Espanca se jogando em meio ao público com a sua linguagem clownesca. O pacto com a plateia é imediatamente estabelecido e Rodrigo traz todos para o seu jogo, ou seja, o público da segundaPRETA e, o mais estimulante de se ver, o espectador local, que é aquele que “habita” o espaço urbano e que aceita, com toda a sua generosidade, dividir a cena com o “artista”, participando da realização de um suposto casamento com o palhaço negro, que lhe dá um selinho, como se fosse um beijo roubado e leva o público ao riso solto. A fronteira cena/arte/vida é borrada em vários momentos. Se a ideia era “catar” risos, o objetivo é atingido “com louvor”. Todos se divertem com as partituras físicas do ator-palhaço, o seu corpo negro é o elemento constitutivo da cena e de sua proposta de catar risos, mas o mesmo também é rasurado em cada gesto, é expandido ao demonstrar que artista é capaz de assumir performativamente qualquer instância de comunicação, corroborando o argumento de que não existe “lugar” específico de atuação para o intérprete negro.
Olha o pesado aí, de Lucimélia Romão e Laura Cerqueira; Sobre todos os dias, de Tatiana Henrique; e Despejadas, do Grupo Nóis de Teatro composto pelas atrizes Amanda Freire, Kelli Enne Saldanha e Nayana Santos; têm em comum o fato de terem sido inspirados na obra de Carolina Maria Jesus, demonstrando que o seu Quarto de despejo e o seu Diário de Bitita continuam sendo fonte de pesquisa para grupos que têm elaborado propostas espetaculares a partir de uma mirada comprometida com o “olhar preto”. Ressignificar a obra de Carolina corrobora o argumento de que o teatro negro transcende as fronteiras regionais e se conecta a partir de suas temáticas comuns, ratificando, mais uma vez, a ideia de que a arte negra não respeita fronteiras, mas, na verdade, as rompe em prol de um discurso que propaga identidades que se reconhecem nas cenas. Assim, trabalhos concebidos em lugares de enunciação diferentes – respectivamente, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Ceará – conseguem transpor os limites geográficos, encontram-se e se conectam a partir da “imagem” da mulher que foi Carolina. É interessante observar como as palavras da autora continuam reverberando e sendo utilizadas para a ressignificação e releitura de nosso contexto. Nos trabalhos apresentados, o público conhece um pouco dos textos da Carolina, identifica fragmentos comuns da obra da autora que foram utilizados nas propostas, fato que ratifica a importância de suas palavras-discursos que continuam a transcender o discurso escrito gerando novas dimensões sociopolíticas. As tessituras narrativo-poéticas de Carolina ganham outras dimensões textuais e interpretativas nos três exercícios, que são trabalhados em formas de cenas-imagens.
A primeira imagem que chama a atenção vem de Olha o pesado aí, de Lucimélia Romão e Laura Cerqueira. Trata-se da cena-imagem homens com o livro na cabeça, momento que encerra a proposta espetacular em que as atrizes escolhem, entre os presentes, alguns homens e os convidam para, como elas, colocarem um livro sobre a cabeça e ocuparem o espaço de representação. Durante a cena, as atrizes trazem Carolina para a conversa de várias maneiras. Além de utilizarem trechos de sua obra na composição de suas ações dramáticas, entoam cantigas, jogam com o meneio de seus corpos e carregam livros na cabeça (a alusão imediata com o trecho da conhecida canção “Lata d’água na cabeça, já vai Maria” é inevitável – Maria, que poderia ser facilmente substituída por Carolinas, Emílias, Joanas, Efigênias…). O livro aqui é possibilidade de conhecimento e não apenas a leitura óbvia de uma labuta feminina, mas o que fica é o momento em que as atrizes vão dividindo o “peso simbólico e factual” dos livros com os homens: somos nós capazes de carregar o “peso” que reina no cotidiano feminino? Fica o questionamento e, neste caso, “Olha o pesado aí” assume sentidos múltiplos.
Com a cena Sobre todos os dias, Tatiana Henrique propõe um rito que é concretizado com a participação da plateia. A sua voz ecoa as múltiplas falas de mulheres. A presença do tambor em cena reafirma o caráter de religiosidade do teatro negro e, para corporificar e presentificar o rito, a atriz oferece ao público um caldo de feijão que é servido em copos de alumínio, num gesto de simplicidade fazendo com que o alimento possa ser coletivizado entre todos. Assim como o alimento é coletivizado, a imagem que fica é a da distribuição e leitura de papéis pela plateia. A atriz completamente envolvida no próprio ritual por ela proposto distribui vários papéis entre os presentes e começa a pedir que as pessoas o leiam em voz alta, criando um coro de vozes que vão se sobrepondo umas sobre às outras. São frases-vozes fortes, engajadas, com enunciações sociopolíticas. Assim como o alimento foi coletivizado, a palavra também passa a sê-lo. Todos, ao lerem os fragmentos que lhes foram entregues, assumem o tom discursivo das palavras e falam com a atriz, falam para si, por si, para todos e por todos: a palavra negra socializada se converte num ato de ubumtu.
Em Despejadas, do Grupo Nóis de Teatro, as atrizes Amanda Freire, Kelli Enne Saldanha e Nayana Santos emprestam os seus corpos e corporeidades para tratar de temas velados e que dizem respeito à condição de mulher negra na sociedade. Entre outros aspectos, elas trazem para o seu público as questões sobre a sua solidão, o silenciamento de sua voz, a coisificação de seu corpo e de suas identidades. Todos esses pontos também são mediados pelas palavras de Carolina Maria de Jesus e, neste contexto, o termo “despejadas” assume inúmeras possibilidades de leitura, configurando-se como um macrossigno pulsante da dramaturgia proposta. Do experimento cênico-performativo, interessa-me a cena-imagem marcante mulher negra invisibilizada. Quando inicia o jogo cênico, o público é recebido por duas atrizes que preparam e oferece a todos um café, servido com fatias de pão – vale destacar as “coincidências criativas” se pensarmos que, em Sobre todos os dias, nos foi oferecido um caldo de feijão para compartilhamento – como uma prática, ou um rito de convívio. A cena é quebrada com a presença de um “ser coisificado” que adentra o espaço lentamente, colocando-se diante da plateia. É imprescindível que se chame a atenção ao fato de que este “ser” sempre esteve ali presente no espaço e na cena, encostado em um canto na lateral da entrada do Teatro; e que o público, em sua grande maioria, passou por “ele”, mas não notou a sua presença. O “ser”, que tinha todo o seu corpo coberto por sacos de lixos cheios de jornais – mais uma referência à Carolina como catadora de papel –, vai se despindo diante do olhar de cada espectador que se dá conta de que o “ser coisificado” – e o lapso em relação ao gênero transcrito e descrito deve ser corrigido e, por sua vez ressignificado – se tratava de uma mulher-atriz negra que até então estava invisibilizada por todos.
A inviabilização social da mulher engrandece diante da potência da cena e das partituras físicas propostas pela atriz com o seu corpo “robusto”, desnudo e que simbolicamente vocifera discursos potentes que passam a não requerer palavras diante do olhar “incomodado”, “inseguro” e, ao mesmo tempo, “comprometido” de todos. A cena rompe com a categoria de “espectador”, pois não é possível passar alheio a esse corpo que performaticamente se volta para o seu público como alvo crivado de denúncias, que só não serão interpretadas em suas distintas instâncias enunciativas por aquele[a]s que não quiserem “ver” e/ou se sentirem afetados.
[fim da parte 1]
[i] Termo utilizado por Allan da Rosa em mesa de debate da MITsp 2018.