“Por Soraya Belusi::”
Anita Mosca ainda guarda um sutil sotaque. Napolitana de Sorrento, sua condição de estrangeira no Brasil é também fruto de uma opção artística, cuja criação se dá no trânsito entre países, identidades e culturas. Já morou no Oriente Médio, fez residência na Suíça, trabalhou com o internacional Odin Teatret e conta um pouco de tudo isso no espetáculo “La Cena”, que integra a programação do FIT-BH 2014 e estreia na próxima terça-feira.
A artista, que procurou o Horizonte da Cena para um conversa, viu sua imagem e sua montagem envolvidas em questionamentos acerca do caráter internacional da obra e, em busca de esclarecer as especificidades do lugar que ocupa como criadora, compartilhou um pouco de sua história, de como seu espetáculo foi inserido na programação do FIT e de como recebeu, segundo ela, com espanto e tristeza, as acusações que foram feitas a ela e ao seu trabalho por estarem locados na grade internacional do evento. Confira abaixo a entrevista. Queria que você falasse um pouco de você. Qual foi sua trajetória como artista? Há quanto tempo está em BH, o que te motivou a vir para cá? Eu não sei se você vai poder assistir à peça. Mas pergunto isso porque, depois de 20 anos de teatro, como atriz e dramaturga, resolvi contar minha historia. Quem for ao espetáculo, vai conhecer um pouco a minha trajetória. É a primeira vez que resolvi usar o elemento biográfico de uma maneira tão evidente na dramaturgia. Mas, eu comemoro 20 anos de teatro, então acho que faz sentido e resolvi contar essa história. O foco da minha dramaturgia é a questão feminina e acho que tem muitas perguntas para se colocar sobre o que significa ser mulher e artista ainda hoje. A minha história começa com 17 anos de idade, entro numa companhia italiana, sou italiana de Nápoles. E, na Itália, o teatro é praticado nos centros de pesquisa, nos grupos, e não na faculdade. E aí toda minha formação foi em grupos. O primeiro foi com 17 anos, fiquei lá cinco anos, com grandes mestres da direção e dramaturgia, especialistas em vários aspectos das artes cênicas, dando oficinas ou montando peças. E depois trabalhei com outros grupos e tive um convívio muito intenso com o Odin, que estava com o Teatro Eurasiano na Itália. Depois, fundei minha própria companhia, Alkantara (a ponte, em português), que nascia da intuição – que ficou ainda mais evidente depois das Torres Gêmeas – de que havia se difundido uma xenofobia contra os árabes na Europa, naqueles anos isso era muito presente. Isso me levou a assumir que o artista tem que se colocar na sociedade também com discurso político, fez eu me interessar pela literatura árabe. Escrevi e dirigi peças inspiradas em romances de cultura árabe que nunca haviam sido montados na Itália. Isso com apoio da universidade L’orientale, que apoiou muito as minhas atividades. E se passaram sete anos muito intensos no Oriente Médio, não morei lá, mas passava longas temporadas colaborando com artistas locais. Depois de sete anos assim, eu fui convidada com as minhas peças para apresentar em vários países e, em 2010, fui convidada para o Cena Contemporânea (festival internacional realizado em Brasília) com a peça “A Desavergonhada”. Foi ali que comecei a conhecer o Brasil, conheci um pessoal de BH que era ligada à Cia Pierrot Lunar. Quando trabalhava em Napoli, dava oficinas em campos ciganos, manicômios, campos de refugiados palestinos. Então, quando conheci o Brasil, me interessei em fazer essa pesquisa da figura feminina em lugares mais marginalizados, em que a mulher passa por uma situação ainda maior de marginalização. Trabalhei, a partir de 2010, no Morro do Papagaio, com a turma da Casa do Beco. Fiquei lá seis meses como trabalho voluntário e depois fui contratada por um ano. Naquela época, não me expressava bem em português ainda e resolvi estudar português na Letras. Ganhei uma bolsa da UFMG e estou fazendo a minha pesquisa agora no Alto Vera Cruz. Isso mudou o eixo geográfico, mas sempre o meu trabalho estava aberto no mundo, pela Itália, Oriente Médio e, agora, no Brasil. E aqui pretendo ficar por alguns anos, não sei quanto tempo, porque tenho muita saudade dos meus familiares e amigos, mas fica difícil viajar. Mas para o período que vou passar aqui, gostaria de desenvolver essa pesquisa em lugares marginalizados e produzir dramaturgias originais. Como nasceu “La Cena”? As primeiras pesquisas para a peça começam em 2011. Eu pretendia fazer uma estrutura pelo menos em português, para me comunicar com o brasileiro, mas, naquela época, eu não tinha condição de fazer. Foi um processo mais longo que os outros trabalhos que fiz. Ainda assim, com um português muito precário, fiz um experimento em 2012 para poucos convidados, em Tiradentes, em um contexto muito protegido, que foi a apresentação de um estudo. A proposta era trabalhar sobre a memória e o teatro como ritual. A peça traz essa coisa de comer juntos, a memória, elementos biográficos e ficcionais de uma atriz, de o que significa se tornar mulher e proporcionar para o espectador um ritual de compartilhar a comida. Enquanto isso, fui estudando o português, fiz uma temporada de ensaios na Itália, em 2013, e fiz uma residência artística na sede do Teatro delle Radici, em Lugano, na Suíça, com a diretora Cristina Castrillo, argentina que mora há 30 anos em Lugano. E, com todo esse material, eu voltei ao Brasil e, em outubro de 2013, resolvi estrear com apoio do consulado da Itália em BH e com incentivo da Lei Rouanet. O consulado italiano me deu apoio oficial de várias maneiras, além de me incluírem na programação da 13ª Semana da Cultura Italiana no Mundo. A temporada na Pierrot Lunar faz parte dessa programação. Consegui agora uma dignidade no português, mas, como a peça conta sobre os 20 anos da minha carreira, tem duas cenas em napolitano. Eu pedi para o FIT-BH a legenda; assim como aconteceu na temporada que fiz na Pierrot. O napolitano é minha língua mãe, não é um dialeto, provavelmente na UFMG farei algo especifico sobre isso. Na peça, tem ainda um canto em árabe, porque aprendi um pouco também dessa cultura.
Você está sozinha em cena e assina toda a criação do espetáculo. Ao mesmo tempo, comentou essa proximidade com o pessoal da Pierrot. Como é sua relação com a cena teatral em BH? Já encontrou parceiros, colaboradores? Claro que isso demanda tempo. São possibilidades que vão se construindo. Este ano, tive muito convívio com a Pierrot, que sempre me recebeu de portas abertas, assim como o dramaturgo Juarez Guimarães Dias. Com o Musica Figuratta, trabalho como atriz e cantora convidada por eles em algumas colaborações. Já assisti aos trabalhos de vários grupos daqui, como espectadora comum, entre eles o Galpão. Fiz uma oficina sobre Pirandello na Funarte e conheci o Toninho (Antonio Edson, ator do grupo). Acho que BH tem uma cena teatral muito interessante, queria mais conexões, tenho a oportunidade de colaborar com alguns, tenho essa relação com a Casa do Beco também. Mas não é fácil se entrosar. Outro grande amigo é o Ed Andrade, cenógrafo. Ele insiste muito comigo para sair, conhecer as pessoas. Mas ainda sou bastante tímida. Como você procedeu na época de inscrever o espetáculo para o FIT? Na época da inscrição dos espetáculos locais, você se inscreveu ou iria se inscrever? Como eu estava morando a grande parte do ano aqui, fiquei sabendo do prazo para a inscrição até 30 de dezembro de 2013. Mas eu pensava: ‘não vou poder mandar como local porque, se pensarmos a peça, o que ela conta, o meu sotaque, as legendas das cenas, ela não é local. Por outro lado, a curadoria do FIT não vai encontrar minha peça no exterior neste momento, o que não seria totalmente internacional dentro dos critérios que estavam sendo balizados. Então, eu preparei o material, assim como pedia o edital local, liguei lá na coordenação e disse: ‘sou uma estrangeira que mora na cidade, não me encaixo como expressão da cultura mineira, mas também não me encaixo no internacional porque não vão assistir à minha peça fora do Brasil. Posso falar com alguém da curadoria?’. Eles me atenderam, fui lá e encontrei a Ana Amélia, entreguei o material. Eu lembro de dizer a ela: ‘Acho triste que o FIT só tenha abertura para locais ou internacionais, e os estrangeiros que moram aqui?’. Nem tudo se encaixa numa definição apenas. Sou uma artista que agora produzo aqui, como já foi no oriente Médio, na Espanha, na Itália. Eles escutaram minha história, falaram que iam avaliar. Saiu a lista dos locais, e eu não estava lá. Isso não me surpreendeu, afinal não me considero local por não ser uma expressão da cultura mineira. Eles me contataram, acharam interessante a proposta, e sugeriram colocar na grade como Itália-Brasil. Fiquei muito feliz, o FIT é uma vitrine muito interessante, e achei a maneira como eles queriam colocar, Itália-Brasil, a mais honesta. Tive apoio do consulado italiano, do governo brasileiro; o espetáculo se constrói em parte no Brasil, parte na Suíça italiana. E aceitei o convite com muita felicidade. Inclusive, apresentei em Cuba (janeiro de 2014) e na Suíça (outubro de 2013) recentemente, e eles colocaram lá outra peça minha, “A Desavergonhada”, como Brasil-Itália. E estou me acostumando a isso porque me identificam já com os dois países. Só que, quando aconteceu aqui, eu fiquei sabendo, notei uma polêmica em cima disso, não entendendo muito bem a razão de isso estar sendo polemizado. As pessoas escrevem ‘vão oferecer isso pra ela? Vão pagar passagem para a Itália?’, e eu realmente não entendi. Na condição de estrangeira, tem contextos que não compreendo mesmo. A meu ver, se não se apoia a presença estrangeira na cidade, desde que sejam obras com vigor e seriedade, não tem como se internacionalizar. Se a classe artística pretende te encaixar em uma definição que é local, você não tem mais sua identidade, agora é expressão da cidade, acho isso uma violência. Tenho colegas morando na Inglaterra, Gales, Paris, ninguém falou com eles que são locais. Estou lá, com a minha imagem, envolvida em coisas que não entendo. Talvez isso se dê porque, até agora, a única informação que todos nós tínhamos é de que você era italiana. Mas, quando um estrangeiro produz com recursos e equipes brasileiras isso não o torna internacional. Com certeza não. Eu fui convidada em fevereiro e março agora para fazer a direção de um espetáculo para o Teatro Goldoni, de Brasília. Eu sou a única italiana lá. O elenco é brasileiro, a tradução do Pirandello foi pensada para o público brasileiro, o dinheiro é do Brasil e a produção é brasileira. Como diretora, sou convidada, eu estou simplesmente trabalhando e a produção é local. A outra coisa é: se eu, que sou autora teatral há 20 anos, faço uma dramaturgia minha original, coloco clara uma identidade que até pode ser desterrada, e em trânsito, isso sim é uma peça que, se não for totalmente internacional, é pelo menos híbrida. E graças a deus que não se encaixa apenas em um lugar. Há muitos modelos de coprodução, então, no meu caso, eu acho um erro o que vem acontecendo. Há outro espetáculo envolvido neste debate e, a eles, foi prometido, segundo uma das atrizes, um apoio de passagens para viajar internacionalmente. Isso aconteceu com você? Acho que gerou um certo constrangimento na classe teatral a inclusão do espetáculo na grade internacional, visto talvez como “privilégio”, já que os cachês costumam ser diferenciados nessas duas categorias (local e internacional) e, em uma programação com excesso de opções, o público tende a privilegiar as montagens de outros países, já que, as locais, ela pode ver em outra oportunidade. Como você recebeu isso tudo? Cada cidade tem dinâmicas que não se tem acesso quando não se vive nela há muitos e muitos anos. Eu não conheço ainda o contexto daqui. No meu caso específico, nada me foi prometido. Quando me falaram que seria identificado como Itália-Brasil, pensei que seria muito legal. Eles me disseram que vão dar uma voz aos estrangeiros no território, que futuramente vão lançar ações voltadas para isso também. Depois, recebi, como todo mundo, o convite para conhecer o Intercena. Vi que produziram um material das peças locais, muito bacana, e minha peça não está lá, obviamente. Se, de um lado posso ter sido privilegiada como internacional por todas as razões que você acaba de dizer, por outro lado, os programadores não viram meu material. Isso não é nenhuma reclamação, que fique claro. Ser estrangeiro tem isso, não só no teatro. Tem coisas que favorecem e outras que vão te desfavorecer. Todo mundo que viveu em outro país sabe disso.