– por Felipe Cordeiro –
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Agora Crítica, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Espetáculo assistido no dia 12 de setembro de 2024, no Teatro do Parque, em Recife-PE.
A peça Ficções, escrita e dirigida por Rodrigo Portella, protagonizada por Vera Holtz, aborda a capacidade humana de criar e acreditar em ficções, inspirada no best-seller Sapiens (2011) de Yuval Noah Harari. A obra, que já percorreu mais de 25 cidades e foi assistida por mais de 85 mil pessoas, propõe um diálogo provocativo sobre as narrativas que sustentam nossa sociedade: deuses, dinheiro, nações e outros constructos que, ainda que artificiais e criados pela própria humanidade para mediar a vida em sociedade, escapam ao controle de seus criadores, ganhando mitologia própria e exercendo um impacto profundo e palpável em nosso destino coletivo.
Foto: Flavia Canavarro
Portella constrói uma dramaturgia que foge do drama convencional. Ficções também não pretende adaptar diretamente as ideias de Harari, mas, em vez disso, dialogar com elas, explorando suas premissas de maneira fragmentada e performática. O espetáculo se articula como uma reflexão sobre o lugar da memória e das identidades na construção da subjetividade. Ao adotar essa abordagem, Portella evita as simplificações ou generalizações pelas quais o texto de Harari é, por vezes, criticado, optando por uma investigação cênica que abre espaço para as ambiguidades e complexidades humanas. Em vez de reproduzir as interpretações lineares e, em alguns casos, reducionistas, da história e da evolução, a peça revela a fluidez da ficção, conectando-a às incertezas da experiência individual e aos recursos da encenação. Tal escolha evidencia uma crítica implícita à visão determinista que permeia certas passagens de Sapiens, sugerindo que a construção das identidades não se limita a narrativas grandiosas e unificadoras, mas se desdobra em pequenas e fragmentadas histórias pessoais, tão frágeis quanto essenciais.
Em cena, Vera Holtz não se entroniza como uma diva e se transforma em múltiplas vozes, figuras e lembranças que se entrelaçam, como se sua própria existência estivesse sendo reescrita e desmontada ao longo da peça. Holtz, em uma atuação precisa e inteligente, com modulações vocais bem assentadas, joga, de forma irônica (mas não cínica), com seu próprio legado de fama televisiva. Isso faz todo o sentido para o público que estava ali, já que, no foyer do teatro, é possível ver uma mesa repleta de presentes para a atriz. Um fato incomum na maioria dos espetáculos, mas característico de produções com artistas nacionalmente reconhecidas — como é o seu caso.
Nesta obra, a atriz transita entre personagens literários e criações originais, provocando o público a questionar suas próprias certezas sobre os percursos de nossa espécie. O título (Ficções ou F[r]icções) sugere uma abordagem metalinguística, e de fato, a peça explora as fronteiras entre o real e o imaginário, questionando a solidez de nossa própria narrativa. A ficção, como sugere Holtz, é inevitável e permeia cada aspecto de nossas vidas, desde o modo como nos vemos até como somos vistos pelos outros. No entanto, ao invés de tratar a ficção como ilusão ou mentira, a peça a coloca no centro daquilo que compõe o ser humano.
Desse modo, Holtz participa de um jogo teatral que, ao destacar o caráter fictício da própria peça, subverte constantemente as premissas de identificação do drama tradicional e as expectativas de quem pudesse esperar por esse tipo de obra. O espetáculo, longe de oferecer respostas, sugere que a construção de ficções — sejam elas religiosas, políticas ou sociais — é tanto a maior força quanto a principal vulnerabilidade da humanidade. A interação constante com o músico Federico Puppi, responsável pela trilha sonora original e também presente em cena, amplifica o caráter experimental da montagem, que se desenvolve como uma espécie de jam session performática. Esse diálogo entre som e corpo intensifica o estado improvisacional, enquanto a performance se transforma em um fluxo vivo, (mediadamente) imprevisível, que dissolve possíveis fronteiras rígidas entre música, palavra e ação cênica.
Soma-se a isso, um cenário desafiador desenhado por Bia Junqueira, a iluminação de Paulo Medeiros e os figurinos de João Pimenta. A partir dessas visualidades da cena, nota-se um cenário vai além de ser um instrumento utilitário do ator, atuando como um poderoso enquadramento de ecos do neoconcretismo brasileiro. A cenografia remete a elementos de instalação artística e reflete a colaboração de Holtz com diretores como Gerald Thomas, conhecido por integrar teatro e artes visuais de forma inovadora e estimulante. A assertividade e economia no uso dos objetos cênicos também evoca outros espetáculos de Portella, como o excelente As crianças (The children), da dramaturga inglesa Lucy Kirkwood.
Neste caso, Bia Junqueira entra no jogo de Ficções e propõe uma arquitetura que evoca meteoros, minerais, pedras, cérebro, e, ao mesmo tempo, sugere temas como primeiros utensílios, moradia, ciência e tecnologia. A escultura principal, criada por Junqueira e executada pelos irmãos Clécio e Cléber Regis, rouba a cena, transformando o palco em um espaço performativo que dialoga diretamente com a formação cênico-musical-visual de Holtz e sua forte ligação com a arte contemporânea. Esse ambiente cênico, criteriosamente iluminado por Paulo Medeiros, expande os limites do teatro para o campo das artes visuais, criando uma experiência conceitual e imaginativa, na qual o público é instigado a refletir sobre significados menos usuais de cada objeto.
Foto de divulgação
Essa fusão entre o cenário e a trajetória artística de Holtz cria uma plataforma para que a atriz construa uma interação ainda mais honesta com o público. No início da encenação, a performer estabelece uma série de combinados com a plateia, de modo que, ao longo da obra, os espectadores reajam de maneiras específicas a partir de certas provocações feitas por Vera. Mais uma vez esse é um dos movimentos de construção explícita do pacto cênico. A partir disso, Holtz se utiliza de um jogo corporal preciso e de um texto que mescla lirismo, informalidade e crueza para guiar o público por uma espécie de labirinto interior. É como se cada cena nos convidasse a adentrar mais fundo em um universo onde as lembranças se misturam ao presente, e o tempo se dobra sobre si mesmo. A atriz carrega o peso dessas histórias com uma leveza desconcertante, ao mesmo tempo em que desvela que o fragor da mais pesada rocha pode ser redimensionado a partir de uma breve mudança de luz, de perspectiva.
Rodrigo Portella, em sua direção, conduz a montagem com mão leve, permitindo que Holtz e Puppi brinquem com as convenções teatrais e mantenham uma proximidade dinâmica com o público. É essa interação direta, essa quebra constante da quarta parede, que transforma Ficções em uma experiência engajante, em que o jogo teatral espelha o próprio conceito de ficção que o espetáculo pretende questionar. A direção dialoga com a performance de Holtz de maneira sutil, criando espaços vazios e silêncios que amplificam a presença física e emocional da atriz. A peça convida o público a participar ativamente desse jogo de espelhos, no qual cada gesto ou palavra parece sugerir mais do que revela.
Além disso, o que talvez mais impressione em Ficções é a forma como o espetáculo questiona a ideia de uma identidade fixa e coesa, e o faz diante de um público amplo, não em uma pequena sala de teatro experimental. Em uma era marcada por identidades fragmentadas e fluidas, a peça parece sussurrar que somos todos personagens de histórias que nos foram contadas, e que, ao final, cabe a nós decidir se seguimos esse roteiro ou se ousamos reescrevê-lo.
Holtz, cuja trajetória se entrelaça com interpretações vigorosas e versáteis, tanto no teatro quanto na televisão e no cinema, confirma e expande suas qualidades em Ficções, revelando não apenas a maquinaria das histórias que conta, mas também a própria ficcionalidade do teatro como forma de arte. O espetáculo é, acima de tudo, um convite à reflexão sobre o que há de construção e máscara em nosso eu, e como, por meio dessas ficções, podemos nos permitir outras leituras e possibilidades de existir. O teatro, aqui, não é apenas um espaço de representação, mas um laboratório em que as fronteiras entre ser e representar são tensionadas, permitindo que as ficções se tornem ferramentas de autoexploração e reinvenção.
Ficha técnica:
Obra idealizada por Felipe Heráclito Lima
Escrita e encenada por Rodrigo Portella
Performance e Trilha Sonora Original: Federico Puppi
Interlocução dramatúrgica: Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa
Cenário: Bia Junqueira
Figurino: João Pimenta
Iluminação: Paulo Medeiros
Preparação corporal: Tony Rodrigues
Programação Visual: Cadão
Fotos: Ale Catan
Direção de produção: Alessandra Reis
Gestão de projetos e leis de incentivo: Natália Simonete
Produção executiva: Wesley Cardozo
Produção Recife: Flávio Marques
Administração: Cristina Leite
Produtores associados: Alessandra Reis, Felipe Heráclito Lima e Natália Simonete