– Por Victor Guimarães
Crítica a partir do espetáculo Tum Pá 10 Anos, do Grupo Barbatuques, visto em 1º de setembro de 2024 no Entre – Festival das Infâncias, no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas
Fotos de Igor Cerqueira
Com as luzes ainda acesas, o espaço se enche de ruídos e conversas infantis. Um grupo de meninas à minha frente, os olhos vidrados no teto, emociona-se com a subida da tela que acaba de projetar vídeos institucionais antes do espetáculo, interrogando-se sobre como aquele objeto é recolhido magicamente, sem aparente intervenção humana. O espetáculo, para elas, já começou. Para olhos anestesiados pelo hábito, é só uma ocorrência banal, que não se desprende do tecido do cotidiano. Para uma criança, tudo é teatro.
Para um adulto solitário infiltrado em um público repleto de crianças e suas famílias, o teatro que acontece aqui embaixo é tão interessante quanto aquele lá de cima. A plateia vira palco, e é impossível não reter na escrita a interação permanente e ruidosa que se dá entre adultos vestidos de criança no palco e as crianças aqui, ao lado e em frente, amontoando-se junto aos adultos. O pé dos pequenos nem sequer alcança o chão na cadeira alta, mas para cada um deles é preciso, ainda assim, ficar um pouco quieto e evitar correr pelo espaço, cuja arquitetura parece desenhada para a fruição individual e silenciosa dos grandes.
Se toda peça inventa uma forma de convívio, nas artes cênicas entre infâncias – como prefere chamar a curadora do festival, Brenda Campos, em um esforço de inclusão das famílias como parte importante das plateias e também de rasurar o sentido tradicional do “teatro infantil” – isso é decisivo. Aqui, a interação é regra, a contemplação é exceção. Desde a entrada em cena do primeiro integrante do Grupo Barbatuques, estabelece-se um jogo de repetições diferidas entre os comandos lá de cima e as respostas aqui de baixo, e o espetáculo inteiro é fundado nessa relação (ou, ao menos, é isso o que se busca). O ator e músico faz ruídos corporais, bate palmas, e imediatamente a criançada começa a responder. As crianças são como esponjas hipersensíveis e, num átimo, já estão integradas à mecânica do espetáculo, ainda que não se pronuncie uma só palavra.
Desde o título, Tum Pá põe em cena a linguagem característica que tornou o Barbatuques um grupo musical emblemático, com uma trajetória de quase 30 anos. Neta da poesia concreta e filha da vanguarda paulistana, essa linguagem baseia-se fortemente na percussão corporal, que resulta num minimalismo lírico e de instrumentação. Não há instrumentos tradicionais como cordas, sopros ou bateria, as letras são recheadas de onomatopeias e há uma tendência geral a explorar os sons do corpo como música e sentido. Em sua versão cênica, essa linguagem aposta no esvaziamento do palco, na uniformidade dos figurinos – todos vestem uma combinação de cores primárias – e na constante recusa à linguagem verbal, em uma espécie de busca por reativar os sons anteriores à significação.
Tum Pá, que nasceu como show, se tornou disco, DVD gravado e, agora, é revivido como espetáculo de palco para celebrar dez anos de sua criação, retém algo dessa hibridação entre códigos. Tece-se numa intercalação entre esquetes ou vinhetas – pequenas brincadeiras cênico-musicais, alguns fiapos de ficção, embriões de cena – e outros entrechos mais tradicionalmente musicais, com o grupo inteiro tocando e cantando diante da plateia. A estrutura é como a de um musical sem narrativa. Não há propriamente personagens ou uma trama a se desenrolar, mas momentos de jogo cênico lúdico – e de constante interação com as crianças e suas famílias – interrompidos por canções. A luz da plateia acompanha essa alternância e diminui nos momentos de fruição musical, para subir novamente nos de maior interação cênica.
Nesse meio do caminho entre a cena e o show musical, a impressão ao final é que a cena sai ganhando. O espetáculo é mais vívido quando predomina o jogo, nas constantes interpelações da plateia para que esta se engaje na fabricação de sons corporais, na imitação das vozes dos animais ou nos “sons malucos” demandados do palco. Aqui tudo é música, claro, mas o improviso coletivo, que nos envolve a todos, é mais vigoroso – ou mais divertido, para falar como as crianças – em sua imprevisibilidade e em seu caráter de criação verdadeiramente entre a infância do palco e a da plateia, em comparação com as canções em seu formato mais tradicional. O acontecimento cênico vibra nesses tempos, quando há um espaço de invenção, de respiro entre os corpos no palco e entre estes e nós. Numa belíssima cena, um lado da plateia canta a conhecida canção infantil da Borboletinha, enquanto o outro entoa a da Formiguinha, e a delícia se dá justamente na confusão das letras sobrepostas e no ruído selvagem resultante. Nada mais divertido que bagunça.
Por outro lado, quando o jogo se detém para que vejamos e escutemos o grupo executar uma canção, com sua técnica perfeita, sua harmonia imperturbável e sua virtuose musical, é como se só os do palco estivessem se divertindo. Execução é uma palavra que soa a interrupção violenta, e aqui a sensação é de um corte na onda. O espetáculo se torna bem mais instigante quando tudo se tinge das reações, das vozes e dos ruídos da criançada. Ou talvez essa seja apenas a minha escuta, interessada vivamente nessa contaminação entre palco e plateia, e em tudo o que a presença das crianças nesse espaço aparentemente tão adulto tem a oferecer.
A exceção fica para os belíssimos momentos em que clássicos do cancioneiro brasileiro – de “Peixinhos do Mar” a “Marinheiro Só” –, reduzidos apenas à melodia e entoados pelo grupo no palco, são adivinhados pelas crianças, que começam a cantar e a festejar a própria descoberta da letra oculta pela vocalização. Aqui, não há demanda para que elas interajam, mas elas entram pela janela, como é próprio das crianças.
Nessa arquitetura da fruição imóvel que é um espaço cênico pensado para adultos, ainda que haja muitos esforços do festival para que as crianças se sintam à vontade (a presença de uma mediadora antes do espetáculo, por exemplo), a criança não deixa de parecer um pouco intrusa. Ao meu lado, uma menina insistia em sair do colo para explorar o espaço, sendo imediatamente contida pela mãe. Durante o espetáculo, a maioria desce das cadeiras, fica em pé, caminha o quanto pode entre as fileiras, contrariando as funções habituais do espaço – e nesse desencaixe é que reside o teatro. Nesse embate entre os corpos e a arquitetura é que vibra o que há de mais potente no encontro. Na saída, já no foyer, cada criança recebe uma flauta doce colorida de presente, e é como se o melhor do espetáculo continuasse lá fora. O ruído (em qualquer outra situação, insuportável) de centenas de flautas tocadas ao mesmo tempo e sem coordenação invade os espaços apolíneos do Minas Tênis Clube, assusta os adultos que circulam por ali rumo a outras dependências do clube, e a cena que se arma aqui fora é tão instigante quanto a que se fabricou lá dentro. O acontecimento sonoro e corporal da presença das crianças transfigura subitamente o espaço, instaura repentinamente uma cena, perturba o cotidiano. Nada mais teatral que bagunça.