– por Luciana Romagnolli –
(Foto de capa: Nereu Jr)
Crítica escrita a partir da peça Wayqeycuna (Meus Irmãos), de Tiziano Cruz, vista na MITsp 2024.
É raro encontrar um trabalho com a sagacidade de Tiziano Cruz em Wayqeycuna (Meus Irmãos) para se situar entre dois mundos, sem perder de vista suas distinções e as delicadas relações que se estabelecem entre eles. A cultura popular e a arte institucionalizada. A pobreza e a elitização social. O trágico e a alegria. A morte e a aposta na vida. Cruz opera dobras que preservam a complexidade dos paradoxos que a sua criação artística envolve, mesmo que ouvidos menos atentos deixem escapar a tensão que ele está sustentando em cena.
Sozinho no palco, vestindo um macacão branco, ele se dirige à plateia de uma instituição de arte, em uma mostra internacional de teatro, apresentando suas origens: um artista vindo de um povo que sofre genocídio (os indígenas sul-americanos, no caso, do norte da Argentina) e de uma classe social à qual são negados os recursos materiais. Ele a nomeia diretamente: pobres. “Um pobre pode ser reconhecido por seus dentes. Eu tento, incessantemente, me camuflar como sendo de outra classe social”, diz.
Cruz afirma a distância entre esses mundos e o fato de que ela não se desfaz nas travessias que os agentes da arte contemporânea propõem ao pautar temas e artistas de contextos culturais adversos. Sem meias palavras, ele expõe ao público as condições de sua presença: “Sei que muitos estão aqui para ver quem é a pessoa da moda. Quem é o coya, o indígena que está na moda no teatro […]. Olhem meu corpo quebrado, quebrado, indignado, violado, agora podem me devorar com seus estômagos famintos. Comam e bebam de mim, este é o meu corpo.”
Esta última frase terá ressonâncias ao fim de sua apresentação, assim como todo esse posicionamento inicial está feito para a modalização do que se segue. E aí que parte do público se nega a saber o sabido, resiste a escutá-lo.
Cruz demarca a distância entre o que significa política na vida de quem vem de um contexto de pobreza e, digamos assim, não sem desconforto com essa nomeação, na da chamada elite cultural e intelectual de um país. Não se trata apenas de posicionamento social. Questão de vida ou morte.
Ele é didático ao falar das armadilhas do mercado quando a falta é da ordem material. “Sei muito bem que, muitas vezes, serei a mão de obra barata que sustenta o poder, porque esse foi e será o meu lugar. Em última análise, é isso que o Sul Global representa para o mundo. Para alguns, sou apenas um artesanato, um bem indígena, um produto regional, como os comprados pelos turistas […]”, ele continua, sustentando o desconforto e a contradição que é dizê-lo enquanto se apresenta nos contextos aos quais se refere.
Entretanto, a sustentação serve menos a uma posição cínica do que a uma certeza trágica. “Não se confundam, sou apenas um pobre fugitivo, que busca refúgio nas instituições de arte para não morrer. Não há metáfora aqui”, diz.
A imagem-síntese para a distância de que Cruz trata, para essa falha trágica contemporânea e anacrônica, é a boca. Um pobre se reconhece pelos dentes, afirma o artista. E não é preciso dizer mais quando vemos projetado o vídeo de um homem de traços físicos que se assemelham aos dele, um tanto mais velho, com apenas dois dentes a se entrever através da abertura dos lábios enquanto fala. A materialidade da pobreza insiste sobre os discursos.
Wayqeycuna é última parte da trilogia Tres Maneras de Cantarle a una Montaña, em que se tecem os fios que atam a história familiar de Cruz à dimensão pública, política e econômica do laço social. A primeira trazia a memória do pai à cena. A segunda, a da mãe (que faleceu no dia da apresentação vista para a escrita deste texto). A terceira, apresentada na MITsp, detém-se sobre a memória da irmã.
A morte dela, criança, é narrada como uma fábula de horror, na qual a violência é atribuída aos lobos das histórias infantis. “Tenho certeza absoluta de que se as estrelas pudessem gritar, elas o teriam feito naquela noite, mas só conseguiam brilhar mais e mais […] enquanto as mandíbulas de ódio por nossos corpos penetravam em nossa carne, fazendo o sangue escorrer pela vala. Um concerto de Guaypos nos acordou, e lá estávamos nós, com três lobos em cada perna […]”.
Cruz evidencia o tratamento inumano reservado a sujeitos cujos corpos revelam os traços da pobreza e da origem étnica não branca. A crítica e a poesia aqui não se excluem, elas se intensificam.
A intensa crueza poética conduz o espetáculo através da dor do luto até a celebração de uma partilha. Uma via que poderia ser vista como apaziguadora, como tantas vezes tem sido no teatro contemporâneo, não fosse aquele primeiro posicionamento crítico que o artista faz apontando o impossível de apagar de sua origem seja a qual destino chegue.
Foto: Luciana Romagnolli
Então, quando ele partilha o pão moldado em formas infantis com o público do Itaú Cultural, na avenida Paulista, este não é um ato a ser lido ingenuamente no discurso do “comum”. Há um contexto que nos solicita a considerar os ruídos silenciados para que essa cena aconteça. Dá o pão, o seu corpo, aos lobos.
Quanto do público, anestesiado, não o come sem querer saber de nada disso?
A distância está também entre o dizer e o escutar.