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Por Felipe Cordeiro
Crítica a partir do espetáculo Nasci pra ser Dercy, assistido no dia 11 de janeiro de 2024 na CAIXA Cultural Recife.
O monólogo teatral “Nasci pra ser Dercy”, protagonizado por Grace Gianoukas e escrito e dirigido por Kiko Rieser, presta uma homenagem à Dercy Gonçalves (1907-2008), uma das mais populares comediantes brasileiras do século XX, ao lado de nomes como Otília Amorim e Alda Garrido. Ao longo de uma vida que ultrapassou os 100 anos, Dercy deixou sua marca no circo, no teatro de revista, no cinema e na televisão.
A narrativa se inicia com a personagem Vera Finarelli (interpretada por Gianoukas) adentrando um estúdio para realizar um teste a fim de conquistar o papel de Dercy Gonçalves em um filme. Apesar de um começo com ritmo um tanto truncado – no qual a atriz dialoga com um áudio off do Diretor (com a voz de Miguel Falabella), o que confere certa falta de dinamicidade à cena – a peça vai se desenrolando. Na dramaturgia, a mãe da personagem Vera era uma fervorosa admiradora de Dercy, o que fez com que a jovem crescesse familiarizada e influenciada pelo legado dessa singular artista no cenário das artes brasileiras. Ao assumir a persona de Dercy, Vera inicia o processo de revelar o que seria “a verdadeira essência dessa mulher à frente de seu tempo”.
Foto de divulgação: Heloísa Bortz
Ao longo da trama, Vera manifesta sua revolta diante do roteiro, repleto de estereótipos. No entanto, paradoxalmente, o texto da própria peça acaba reproduzindo aquilo que critica, especialmente ao incluir críticas superficiais à intelectualidade, criando binarismos estanques como a cultura popular versus a cultura acadêmica. A caracterização de Dercy também tende a ser maniqueísta, apresentando-a de forma simplificada e com poucas contradições. O texto aborda diversas passagens da vida da atriz fluminense, como Dercy e como Dolores, mas sempre sob uma perspectiva mítica e elogiosa. Embora se aborde a importância da comediante na primeira metade do século XX, o texto também recai no estereótipo de suas frequentes entrevistas em programas televisivos, sem explorar momentos que poderiam conduzir o público a reflexões mais profundas além do que já se sabe sobre ela.
Conforme registrado pelo pesquisador André Sun, em Dercy Gonçalves, matriz do artista popular brasileiro (2017), Dercy sempre adotou uma postura de excessos. Chegou a fumar quatro maços de cigarros por dia, era cleptomaníaca, comprava compulsivamente, era possessiva e ciumenta, apreciava jogos e tinha pavio curto. Em suas próprias palavras, comparava-se a um cachorro que começa a latir ao ver uma linguiça, ressaltando sua prontidão para reações explosivas, muitas vezes desencadeadas por pouca provocação. Dercy, ao longo do tempo, conseguiu superar muitos desses excessos, em grande parte devido à psicanálise, a qual se submeteu por cerca de nove anos. Durante esse processo, descobriu que muitos de seus vícios serviam como uma forma de compensação por lacunas advindas de problemas de insegurança e carência oriundos de sua difícil infância em Santa Maria Madalena.
“Talvez os excessos de Dercy ajudem em parte a explicar o modo hiperbólico de a bufona se comportar em cena e em entrevistas. No entanto, acredito que ao longo da carreira ela tenha desenvolvido o que se pode denominar de uma tática de chamar a atenção dos meios massivos de comunicação. Não de forma premeditada, pois, como boa representante simbólica dos setores populares, a atriz agia com uma lógica calcada na ocasião” afirma Sun.
O espetáculo também aborda o reconhecimento de Dercy como uma das responsáveis por introduzir o improviso nos espetáculos de comédia, ao buscar uma atuação mais alinhada com a realidade brasileira daquele período. Esse feito permitiu que a atriz se destacasse em um cenário em que, nas tradições do teatro declamado e ligeiro, era comum a importação até mesmo do sotaque lusitano, devido à influência do teatro português e francês em solo brasileiro. No entanto, a peça também apresenta uma abordagem bastante personalista da historiografia do teatro nacional. A obra discute, com razão, o apagamento de Dercy, mas deixa de ressaltar atrizes contemporâneas a ela, como Otília Amorim e Alda Garrido, sugerindo que Dercy fosse, sozinha, um ponto de inflexão no teatro nacional. Na obra A literatura dramática do Teatro Experimental do Negro: entre a crítica e a história, Guilherme Diniz também menciona Pérola Negra e Coralina, atrizes negras do teatro de revista que, embora tenham recebido muitos elogios na época, não desfrutam do mesmo destaque atualmente em comparação com atrizes brancas como Dercy. Esse fenômeno evidencia que, além das disparidades de gênero, a questão racial desempenha um papel crucial nesses apagamentos.
Além da abordagem histórica, destaca-se a versatilidade de Grace Gianoukas em cena, capaz de construir uma performance altamente ritmada, repleta de gestos, modulações vocais, tempos cômicos precisos e detalhes de cena que evocam os diversos períodos históricos pelos quais Dercy Gonçalves atravessou. Em um bate-papo pós-espetáculo, Gianoukas compartilha o desafio que foi interpretar Dercy – mesmo que de maneira indireta – pois não é o mesmo que dar vida a personagens como Lady Macbeth e Julieta, que nunca existiram fora da ficção. “Eu construí a Dercy Gonçalves como um escudo protetor para Dolores Gonçalves Costa, que tanto sofreu. Aquela figura histriônica que ela assumia no palco era uma camada de proteção para que ninguém a fizesse reviver tudo o que passou”, explica Gianoukas sobre seu processo de construção da personagem.
O cenário da peça é simples: inicialmente, há um ciclorama branco, que ganha cores ao longo do espetáculo, com alguns refletores simulando um estúdio para testes de audiovisual. A atriz entra em cena com uma cabeça de manequim, peruca e alguns acessórios que utiliza como recursos para se transformar em Dercy. Adicionalmente, há algumas caixas no chão, utilizadas pela atriz para se sentar. Num momento específico da encenação, a parte vertical do ciclorama despenca, revelando uma cortina dourada e brilhante, com um letreiro iluminado que exibe a palavra “DERCY”, numa alusão aos palcos do teatro de revista.
Foto de divulgação: Heloísa Bortz
Durante a ocasião em que assisti ao espetáculo, financiado pelo projeto de ocupação da CAIXA Cultural Recife, acompanhei também um bate-papo com a atriz, o diretor/dramaturgo e o produtor Paulo Marcel. Segundo minha leitura, algumas fragilidades do espetáculo também estão traduzidas nos pressupostos teóricos e históricos da equipe. No contexto de uma contrapartida de um projeto financiado com recursos públicos, a atividade ficou aquém das expectativas. Enquanto a encenação fazia piadas sobre questões políticas contemporâneas, como os ataques antidemocráticos revestidos de “patriotismo”, a equipe, tal qual alguns “patriotas”, também endossava críticas superficiais a intelectuais e instituições de ensino formal, como universidades e museus. Para enaltecer as comédias populares, o coletivo lança investidas a outras vertentes de produção cênica e de pensamento, quando, na verdade, o mais interessante seria adotar uma abordagem dialógica.
Gianoukas afirma que Dercy não está na academia, que é uma instituição “preconceituosa, muito careta e que tem que conhecer o Brasil”. E prossegue: “Por isso eu abandonei a faculdade. No terceiro semestre abandonei tudo e fui para o teatro”. Este comentário me parece infeliz no contexto em que está inserido, pois há trabalhos acadêmicos excelentes sobre Dercy, como a robusta tese de doutorado Dercy Gonçalves, o corpo torto do teatro brasileiro, de Virginia Maria De Souza Maisano Namur, ou a dissertação de mestrado de André Sun, resultante de uma pesquisa de mais de trinta anos, intitulada Dercy Gonçalves, matriz do artista popular brasileiro. Em suma, sabe-se que o ambiente universitário, como qualquer outro setor da sociedade, não está isento de preconceitos das mais diversas ordens, mas também há inúmeros contramovimentos. Tão problemático quanto não reconhecer as mazelas é se abster de um pensamento dialético, que compreenda tais contradições.
Ainda no decorrer do debate, um espectador levanta a questão de como a arte pode se aproximar do público, criticando (de maneira genérica) a complexidade dos textos em museus e peças de teatro, como se o público não tivesse qualquer qualificação ou interesse em acessar obras que não necessariamente são cômicas ou de linguagem corriqueira. O diretor responde de maneira ponderada, mas Gianoukas interrompe com uma visão mais simplificada, rotulando algumas pessoas como “bestas” por tentarem “agradar à crítica” – que segundo ela também é “besta”. A atriz, ao abordar o Recife e a cultura local, recorre a lugares-comuns, desconsiderando a complexidade de figuras como Ariano Suassuna. Ao contrastar a cultura popular com a produção intelectual, Gianoukas não leva em conta que Suassuna mesmo advogava por uma arte erudita fundamentada em elementos da cultura popular nordestina. Além disso, Suassuna era intelectual, professor universitário, crítico, entre outras facetas.
“E aí vamos fazer o seguinte, vamos chamar Dercy para traduzir os textos que tem nas paredes dessas exposições, e quem gostou gostou, quem não gostou vá à merda”, conclui Gianoukas. Falas como essas da equipe do espetáculo, além de não enriquecerem discussões que, na verdade, são muito mais complexas, evocam o que de mais retrógrado vivemos na política brasileira dos últimos anos: os ataques às universidades, à produção de conhecimento científico qualificado, à preservação de espaços que resguardam parte do nosso patrimônio e cultura – como os museus, dentre outros. O produtor da peça afirma que o popular não é discutido na academia, sugerindo que a universidade não cumpre seu papel. No entanto, essa visão é limitada, considerando a extensa produção acadêmica brasileira dedicada a temas populares. Vê-se, portanto, que a obra ao mesmo tempo em que desconstrói alguns imaginários sobre uma importante atriz brasileira do século XX, também inflama discursos reacionários, que são bastante perigosos, principalmente quando trabalhados sem ponderação e fundamentação crítica.
Em resumo, optei por resgatar a discussão pós-espetáculo, pois, da mesma forma que os paratextos transformam um texto em um livro, o teatro também se enriquece com elementos para além da mera apresentação em cena. O que o torna uma manifestação cultural que transcendeu tantos séculos não é apenas a sua encenação, mas todo o debate público que ele promove em escolas; universidades; na crítica (seja jornalística ou acadêmica, em meios impressos e digitais); na publicação de dramaturgias, traduções, teoria e memória; nas fotografias; nas premiações; e em dezenas de outras formas de aparição. Para criticar tantas instituições basilares da cultura brasileira e propor uma abordagem complexa, é necessário produzir muito mais do que frases de efeito, onde a falta de diálogo construtivo é evidente.
Em última análise, Nasci pra ser Dercy apresenta uma imagem ambígua sobre a comediante, oscilando entre desconstruir e reproduzir estereótipos. A riqueza da atuação de Gianoukas contrasta com as limitações da dramaturgia, enquanto as abordagens superficiais em debates públicos indicam a necessidade de um diálogo mais profundo e inclusivo para verdadeiramente fazer com que o legado de Dercy Gonçalves dialogue com o estado atual da arte e dos campos culturais brasileiros.
FICHA TÉCNICA
Texto e direção: Kiko Rieser
Atuação: Grace Gianoukas
Voz off: Miguel Falabella
Cenário e figurino: Kleber Montanheiro
Desenho de luz: Aline Santini
Trilha sonora original e arranjos: Mau Machado
Canção “Malandrinha”: Freire Júnior
Canção-tema “Só sei ser Dercy”: Danilo Dunas e Pedro Buarque
Visagismo: Eliseu Cabral
Assistência de direção: André Kirmayr
Preparação corporal: Bruna Longo
Preparação vocal: André Checchia
Direção de produção: Paulo Marcel
Realização: Ventilador de Talentos