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– por Marcos Antônio A Alexandre –
Crítica do espetáculo Azul, da Artesanal Cia. de Teatro
Recentemente, em setembro de 2023, eu recebi o convite do querido Keu Freire, um dos curadores, com Brenda Campos, do Entre – Festival das Infâncias Gerdau, realizado no Centro Cultural Unimed-BH Minas, para assistir ao espetáculo Tatá – o Travesseiro, da Artesanal Cia. de Teatro, do Rio de Janeiro. Como um espectador que curte ver trabalhos voltados para as infâncias, mas que, muitas vezes, deixa o teatro insatisfeito com a maneira como as produções tratam o universo infantil, no dia 10 de setembro, depois entrar em contato com o trabalho da Artesanal, saí do teatro em “estado de graça”, como costumo dizer quando gosto de algum espetáculo. Não há como não se encantar com a história da personagem Lipe, uma criança adotada e sonhadora que faz de seu melhor amigo o travesseiro, Tatá, com quem vivencia aventuras incríveis mediadas por um universo onírico, cheio de surpresas e ações repletas de peripécias. Um dos aspectos que mais me chamou atenção nesta montagem da Artesanal Cia. de Teatro, além da excelente atuação do elenco e sua habilidade na arte de manipulação dos bonecos, foi observar o universo de fabulação discutido pela peça, centrado na história de afeto de uma família preta, que, em cena, é vista a partir da perspectiva do menino Lipe. Ele divide com o público sua história desde o momento em que é adotado pelos seus pais, até os episódios incríveis vivenciados por Lipe em seus sonhos.
No dia 6 de novembro de 2023, eu retorno ao teatro, mas, desta vez, no espaço do Teatro 2 do CCBB-BH, para assistir Azul, o novo espetáculo da Artesanal Cia. de Teatro, e, neste momento, com mais informações sobre o grupo, que tem uma sólida trajetória de 28 anos de trabalho, com experiências dramatúrgicas e cênicas pautadas na produção de textos espetaculares relacionados ao âmbito das infâncias. Confesso que volto ao teatro cheio de expectativas depois do primeiro contato com o trabalho da companhia e, com imensa satisfação, pude comprovar que a sensação de arrebatamento foi a mesma, se não mais intensa, em relação ao momento em que vi Tatá – o Travesseiro. Azul apresenta texto e dramaturgia de Andrea Batitucci e Gustavo Bicalho, tem direção de Gustavo Bicalho e Henrique Gonçalves e conta com um elenco afiado composto por Alexandre Scaldini, Brenda Villatoro, Bruno de Oliveira, Carol Gomes, Marise Nogueira e Tatá Oliveira.
Quando adentro o espaço de apresentação, o cenário já está à mostra. Em cena, vemos um ator com um figurino preto, que recebe os espectadores enquanto realiza pequenas ações físicas enquanto o público se acomoda. Aguardamos, cheio de expectativas, os sinais para entramos em contato com história de Azul. Nada, no espaço de cena, é aleatório:
um ator vestido com um figurino preto observa a plateia…
um relógio de parede no fundo do palco (que será acertado pelo ator no “início” do espetáculo)…
o tic-tac do relógio…
uma ampola do tempo…
uma passarela…
2° sinal
O ator caminha pra lá e pra cá,
lê um livro (um caderno / um diário?),
cruza os braços olhando para a plateia…
Uma ampola e o tempo…
Um metrônomo e o tempo…
O tic tac do relógio e o tempo…
A passarela…
Uma mala e um rádio dispostos estrategicamente no espaço cênico…
Instiga-me pensar que meu encantamento é compartilhado com as crianças que estão no espaço assistindo ao espetáculo com pais, familiares e acompanhantes. É nesse momento que a fábula de Azul começa a habitar a minha criança interna e é aqui que recorro à sinopse divulgada pela produção do espetáculo para dividir com o leitor desse texto, para que você possa acessar o universo de fabulação trilhado pelo grupo:
Violeta, uma menina de quatro anos, está ansiosa pela chegada de seu irmãozinho, Azul. O que ela não imaginava, é que ele acabaria ocupando um espaço inesperado na vida da família. Entre os ciúmes e a aceitação de um irmão tão diferente, Violeta descobre que é preciso lidar com o que a vida propõe para a solução natural dos conflitos. Afinal, o amor entre os irmãos é maior do que qualquer diferença que possa existir entre eles. Apesar de não lidar diretamente com a questão do TEA (Transtorno do Espectro Autista), a peça aborda o tema através das percepções de Violeta, que tenta não só compreender o universo do irmão, como busca maneiras de interagir com ele. De forma leve e lírica e bastante incomum, o texto propõe uma visão sobre as relações dentro de uma família, que tem um integrante que vivencia o mundo de forma singular. (Programa, 2023)
Fotos de Christina Amaral
Esse viver “o mundo de forma singular”, proposto pela sinopse, é o que o espectador de Azul é convidado a vivenciar durante a peça, buscando todas as suas singularidades. É incrível a maneira como o grupo trabalho o espectro autista a partir do universo de fabulação de Violeta em sua relação de afeto com o irmão. A questão da diversidade é tratada com muita sensibilidade, de forma leve, bem humorada e, em alguns momentos, de modo muito didático. Adultos e crianças se entregam às experiências de Violeta, apreciando de que maneira a personagem vai se descobrindo como a melhor irmã para o Azul. A estratégia dramatúrgica de fazer com que Violeta seja a responsável para que o público acesse a história do Azul a partir de sua relação com a chegada do irmão é perfeita, e isso faz com que as crianças presentes se aproximem ainda mais do mundo particular de Azul.
Acredito que, com o espetáculo, a companhia realiza muito mais do que uma imersão no teatro de animação por meio do uso de bonecos e máscara. Os atores se confundem com os bonecos e demonstram toda a destreza e habilidade na manipulação dos bonecos e dos objetos cênicos que compõem o mundo familiar do Azul: o pai e a mãe interpretados por atores mascarados e as crianças Violeta e Azul, interpretadas por bonecos manipulados por atores da cia, cujas ações cênicas, ao mesmo tempo, deslocam o nosso olhar de espectadores para os bonecos, mas também para os atuantes que manipulam os bonecos. Surpreende o trabalho dos atores no uso do mascaramento ao representarem os pais das crianças. Nota-se particularidades interessantes para encontrar o timbre da voz e o timing das ações expressivas escolhidas para evidenciar as partituras físicas expressadas pelo Pai e a Mãe em cada cena.
É fascinante observar como as crianças presentes no teatro interagem com a menina Violeta e suas descobertas em relação ao irmão, além das estratégias que ela utiliza para acessar o melhor que ele tem para lhe oferecer.
Dramaturgicamente, o espetáculo é divido em três atos. Se, no primeiro momento, Violeta, aos quatro anos, cheia de ciúmes, “rejeita” a presença do irmão, acreditando que ele vai tomar o seu lugar como a filha primogênita e querida pelos pais; depois de passados alguns anos e com o desenvolvimento da peça, nós, da plateia, assim como a personagem Violeta, vamos sendo seduzidos pela presença de Azul e também pelos ensinamentos que ele traz para sua irmã Violeta e seus pais a partir de sua condição de autismo. No terceiro momento, a família acredita que Azul sumiu e é nessa passagem que a garota tem um encontro especial com o Tempo, que lhe explica que cada coisa tem seu próprio tempo…
O tempo da música…
O tempo das coisas…
O tempo dos afetos…
O tempo todo mundo…
O tempo de Chronos: o Tempo…
O tempo de Kairós: o Coração…
O que muda é o jeito de cada pessoa sentir o tempo.
O tempo e as espirais do tempo (evocando aqui os estudos de Leda Martins[i]) que vão e vêm, possibilitando que acessemos e que ressignifiquemos as instâncias do tempo da memória e o acesso às subjetividades que nos afetam.
Na concepção espetacular de Azul, percebe-se que os diretores e o elenco, esteticamente, investem na relação do tempo como uma ferramenta para a construção de cada ato da peça – o tempo de cena, o tempo das falas, o tempo das ações, o tempo das partituras físicas – , possibilitando que o tempo, com seus jogos de fabulação e como personagem, formate o tempo espiralar da fábula, funcionando, algumas vezes, como um contador de histórias que também conduz o público, levando-o a compreender as nuances que conformam os múltiplos sentimentos que Violeta experiencia em relação a seu irmão.
Em alguns momentos, de forma sublimar e por meio de uma perspectiva lúdica, a plateia é convidada a revisitar as aventuras de Azul e Violeta, como no passeio em que a família vai à praia e as crianças entram em contato com o mar, com a areia. Enquanto Violeta se encanta com tudo à sua volta, Azul experimenta a dificuldade de lidar com a areia da praia, que lhe incomoda extremamente, afetando a sua sensibilidade. A partir de ações físicas sutis, os intérpretes de Azul e Violeta nos levam para universos outros cheios de poeticidade e de elementos sinestésicos, como, a título de exemplo, a viagem de Azul pelo oceano e seu encontro com a baleia azul, um momento de extrema beleza que, mediado pelos jogos de luzes e pela música, deixa as crianças presentes no teatro eufóricas e cheias de emoção.
Também não posso deixar de mencionar que o reino de fabulação do menino Azul é habitado por pesadelos, sendo esse fato responsável por outro momento impactante e emocionante, culminando na cena em que, durante uma tempestade cheia de raios e trovões, Violeta toca piano para que o irmão, amedrontado pela tormenta, se tranquilize. Aqui, a música é a estratégia sensorial utilizada pela irmã para viabilizar a comunicação e estreitar a relação de afeto com Azul, demonstrando o quanto Violeta está conectada com o irmão, inclusive, em alguns momentos, mais que os pais.
Em seu livro Teatro é infância e memória: o menino que há no homem, Charles Valadares, referindo-se à sua criação artística, argumenta que:
A “energia de criança” é matéria-prima, caldo da [sua] criação: o brincar de faz de conta, experiência criativa da infância, é um momento em que o ser brincante elabora e recria o mundo a partir de brincadeiras, fabulações e corporificações de seres imaginários, inventando vozes e criando narrativas. (Valadares, 2022, p. 66)
Acredito que o Azul da Artesanal Cia de Teatro dá conta de trazer para a cena todos esses aspectos citados por Valadares. É fato que os integrantes da Artesanal são bem-sucedidos ao trazer a “energia da criança” também para a construção da montagem, acendendo as crianças internas existentes nas pessoas adultas que têm contato com a peça. O menino que há em mim, depois de assistir ao espetáculo, sai do teatro extremamente sensibilizado com a história de Azul, eu saio muito emocionado com o que vivenciei no espaço de tempo de pouco mais de uma hora, mas ciente de que o tempo de Kairós fez-se abrigo em minhas memórias afetivas e corporais…
Ficha Técnica
Texto e dramaturgia: Andrea Batitucci, Gustavo Bicalho
Elenco: Alexandre Scaldini, Brenda Villatoro, Bruno de Oliveira, Carol Gomes, Marise Nogueira, Tatá Oliveira
Locução Rádio: Cleiton Rasga
Direção: Gustavo Bicalho, Henrique Gonçalves
Concepção, criação e concepção de bonecos e máscaras: Dante
Direção de movimento dos bonecos e preparação técnica máscara teatral: Marise Nogueira
Direção de movimento dos atores e preparação corporal: Paulo Mazzoni
Preparação vocal: Verônica Machado
Figurinos e adereços: Fernanda Sabino, Henrique Gonçalves
Confecção dos figurinos: Maria Helena
Cenário, objetos e adereços de cena e baleia: Karlla de Luca
Cenotécnico: Antônio Ronaldo
Direção de palco: Alexandre Scaldini
Desenho de Luz: Rodrigo Belay
Operação de luz: Peder Salles e Poliana Pinheiro
Trilha musical: Gustavo Bicalho
Desenho de som: Luciano Siqueira
Operação de som: Pedro Quintaes
Projeto gráfico: Dante
Assessoria de imprensa: Luciana d’Anunciação
Coordenação de comunicação: Alexandre Aquino
Mídias sociais: Tatá Olivera
RP: Evandro Rius
Fotografia: Christina Amaral, João Julio Mello
Consultoria de acessibilidade e inclusão: Cris Muñoz
Assistência de produção: Bruno de Oliveira, Edeilton Medeiros
Produção: Marta Paiva
Direção de produção: Henrique Gonçalves
Idealização: Artesanal Cia. de Teatro
Referências:
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
VALADARES, Charles. Teatro é infância e memória: o menino que há no homem. Belo Horizonte: Editora Javali, 2022.
[i] “um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide. Um tempo ontologicamente experimentado como movimentos contíguos e simultâneos de retroação, prospecção e reversibilidades, dilatação, expansão e contenção, contratação e descontração, sincronia de instâncias compostas de presente, passado e futuro.” (Martins, 2021, p. 204)