* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
– por Marcos Antônio Alexandre –
Crítica do espetáculo O Espigão, do Coletivo Você e Eu.
um irmão mais velho uma irmã mais nova
um desejo comum uma história de amor. a primeira.
se você já amou, essa história é para você. você e eu. você eu e esse elefante branco
que é o único que pode te ouvir.
talvez essa história não tenha acontecido. não comigo com ela com você.
(Programa do Espetáculo. Digital)
Um acerto de contas entre irmãos 17 anos depois de um acontecimento divisor de águas em suas histórias. A narrativa é sobre um irmão e uma irmã que se apaixonam pela mesma mulher. Após mais de uma década de mágoas, eles finalmente conversam, preenchendo lacunas e lançando novos olhares sobre a história. O Espigão é um elefante branco sentado no meio da sala que a gente cansou de tentar esconder colocando um tapetinho por cima. É um convite pra uma conversa, um brinde, uma história de amor. É teatro e tudo isso aconteceu.
(Sinopse. Instagram do grupo)
Os textos citados se referem ao espetáculo O Espigão, montagem do Coletivo Você e Eu, com dramaturgia de Gabriel Morais, direção de Caio Riscado e concepção e atuação de Gabriel Morais e mariah miguel, assistido no dia 21 de outubro num apartamento no Bairro Jardim América, em Belo Horizonte, para um público de cerca de 20 pessoas. Um espetáculo intimista que coloca o espectador diante da “história” de um irmão e uma irmã, fazendo com que sejamos cúmplices dos fatos que são compartilhados pelos performers-personagens ao longo dos 60 minutos de apresentação da peça. Vale salientar que, em 2021 (se a memória não me trai), eu tive a oportunidade de assistir à uma versão do trabalho veiculada pela plataforma zoom e realizada, ao vivo, no Rio de Janeiro. Se naquele momento em que a arte estava sendo mediada pela tela do computador e/ou do celular, a encenação me tocou profundamente, hoje, dois anos depois, ter tido a possibilidade de assisti-la presencialmente me levou para um lugar outro de rememorar o que tinha visto com a ação de retomar, recontextualizar e ressignificar as ações performativas de Gabriel e mariah para hoje.
Fotos de Maria Luísa Grimaldi
Gabriel Morais é ator mineiro, formado pelo Teatro Universitário da UFMG e, atualmente, está radicado no Rio de Janeiro, onde concluiu a graduação em direção teatral pela UFRJ. O Espigão, cuja estreia ocorreu em maio de 2023, no Rio de Janeiro, contou com 11 apresentações distribuídas em cinco casas de diferentes bairros da cidade; bairros esses localizados em todas as áreas de planejamento da cidade, ou seja, áreas-territórios como a prefeitura divide a cidade: AP1 (centro), AP2 (zona sul e região da Tijuca), AP3 (zona norte), AP4 (zona oeste: Barra da Tijuca, Recreio etc.), A5 (zona oeste: Campo Grande, Santa Cruz). Na concepção do grupo, o espetáculo foi pensado para ser realizado fora da caixa convencional do teatro. Neste sentido, os atores têm buscado circular com o trabalho por regiões com diferentes recortes sociais, econômicos e culturais. A montagem também cumpriu uma pequena temporada com quatro apresentações em duas casas de São Paulo.
O Espigão é o espetáculo que integra a pesquisa de doutorado que Gabriel vem realizando no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAC/UFRJ). Trata-se de um trabalho que explora as ambiências do tempo-espaço, propondo uma dramaturgia textual e espacial para cada novo local no qual a peça vem sendo apresentada. Ao espectador caberá o exercício de explorar minimamente os poucos objetos cênicos trazidos para a construção das personagens (equipamentos de um kit básico de escalada) no intuito de compreender de que modo a concepção do espaço cênico – o apartamento –, a partir de suas modulações espetaculares, irá contribuir para a produção de sentido do pacto real/ficcional proposto pelo enredo dramatúrgico.
Da proposta cênica, é muito interessante observar como a sala do apartamento vai se convertendo, diante do olhar do público, em espaços e momentos outros relacionados às cenas que vão sendo fabuladas a partir da história dos dois irmãos. Um triângulo de afetos se estabelece quando o espectador entende que o espaço do apartamento é convertido no ambiente a partir do qual as memórias afetivas das personagens serão sublimadas, revisitadas e retomadas nas instâncias do presente das cenas e no estado de presença convocado pelos atores no desenvolvimento das ações dramáticas. A fronteira tênue da autobiografia e autoficção parece ser o fio suleador da construção dramatúrgica e espetacular da peça.
Tudo se inicia com a recepção do público, que atende ao chamado para assistir ao trabalho e se encontra no 2° andar de um edifício localizado na Rua Gama Cerqueira, no bairro Jardim América. Como espectador, eu vivencio uma sensação meio estranha de me dirigir à casa de alguém desconhecido, um espaço que é aberto para me receber e com o qual não estabeleço nenhuma relação prévia, desconhecendo, inclusive, os donos da casa e as outras pessoas que também apareceram para assistir ao espetáculo. O encontro artístico é compartilhado pelo ator Gabriel Morais que, já vestido como a “personagem”, recebe a mim e todos os demais espectadores cumprimentando-nos e buscando fazer com que nos sentíssemos à vontade na “sua casa”. Como espectador curioso e interessado pelo que iria vivenciar, busco direcionar o meu olhar “especializado” para decodificar aquele espaço, em princípio, alheio e distanciado.
A cena já começou assim que sou recebido por Gabriel e me sento num dos pufs disponibilizados na lateral esquerda do apartamento?
Pergunto-me e me vejo buscando reconhecer algum rosto conhecido no apartamento-plateia, mas descubro que, além do Gabriel, não identifico nenhuma fisionomia familiar com a qual poderia ter cruzado antes em outra situação de socialização artística. Rostos e pessoas muito simpáticas, intuo que a maioria delas já tinha alguma relação de amizade e/ou parentesco com o ator/personagem; imagino que outras poucas pessoas, ali presentes naquele “teatro”, estavam vivenciando a mesma sensação de embarcar num universo de fabulação alheio e, em princípio, desconfortável.
Quais estratégias eu tenho que criar como espectador para habitar aquele espaço?
Sigo buscando reconhecer na sala/palco pistas cenográficas que possam fazer com que eu me sinta mais à vontade naquele teatro nada convencional no qual eu ainda não me via implicado.
Sim, como crítico, tenho grande interesse por propostas espetaculares que me enredam nas narrativas que são fabuladas cenicamente. Permito-me, aqui, esse breve aparte, pois, no primeiro momento, não me senti totalmente estimulado no ato de minha busca solitária por habitar aquela plateia não convencional.
Solto na sala-arena do apartamento, Gabriel se sente à vontade para conversar com algumas pessoas e, atento a tudo que acontece à sua volta, vai “entrando”, tomando para si – e de si – a personagem. Na sala-cenário, além dos assentos distribuídos de forma que a plateia fique num ambiente quadrangular, há uma garrafa d’água, que o ator-personagem utilizará para saciar a sua sede em alguns momentos do espetáculo, e um cavalete num dos cantos da sala, que será utilizado para que o ator-personagem apresente sua família, que será representada por fotografias-imagens de pets domésticos.
A distância que sinto quando chego e me instalo no espaço vai se encurtando à medida que Gabriel Morais, depois de receber todos os presentes e de circular pelo espaço da sala-palco observando as particularidades de cada um de nós, como se buscasse não só reconhecer a fisionomia de cada pessoa, mas também conquistar a nossa empatia, rompe as “paredes” inexistentes da sala-palco e começa a desvelar as histórias e os afetos das personagens envolvidas na peça. As ações autoficcionais começam a ser retiradas dos tapetes (inexistentes no espaço) para serem compartilhadas com o público. O ator convida alguns espectadores para participarem de sua autoficção dramatúrgica. Uma espectadora chamada Fernanda é convocada para segurar o ator-personagem que se veste com equipamentos de escalada e, sustentado por uma corda, se joga no abismo de suas memórias pessoais, segurado pela espectadora Fernanda que assume o papel – função – de sua namorada, a mesma que acabou se envolvendo afetivamente com a irmã do ator-personagem.
A proximidade do ator com as pessoas presentes na sala-palco agudiza o desvelamento da relação afetiva que foi vivida pelo triângulo no passado. O passado é corporificado no presente, na presença da Fernanda (namorada) e de todos nós. Chama a atenção como a narrativa de amor dos irmãos pela mesma pessoa (Fernanda) vai sendo construída ao longo do espetáculo, estabelecendo links com rastros de memórias pessoais e afetivas dos familiares – alegorizadas nas imagens de pets que são apresentadas pelo ator ao público –, com a alusão a lugares e ruas que foram habitados pelos corpos-memórias do ator/personagem, de sua irmã e namorada.
O espetáculo ganha mais ritmo quando a personagem da irmã, interpretada pela atriz mariah miguel, entra em cena, deixando de ser composta e lida apenas a partir da narrativa da personagem irmão-Gabriel. Com mariah miguel, a personagem da irmã reivindica o seu lugar de pertencimento e se coloca como protagonista de sua própria história; assim, ela dá voz a sua narrativa sem ser mediada pelas memórias do irmão. A sintonia entre Gabriel e mariah miguel é sem dúvida um dos aspectos positivos do espetáculo. A relação de irmandade entre eles é muito bem lograda a partir do jogo que se estabelece nos diálogos e nas ações físicas que cada um utiliza para defender suas personagens. Nuances de ironia são trazidas para alguns discursos, possibilitando que reflitamos sobre a questão das afetividades, às vezes mediadas a partir de perspectivas heteronormativas. Assim, ainda que timidamente, o espetáculo abre a possibilidade de ampliar a discussão sobre aspectos voltados para as identidades de gênero, “pauta” fundamental e ainda pouco discutida em propostas espetaculares contemporâneas.
Como os grandes arranha-céus são construídos nos grandes centros urbanos, que irrompem as cidades em espaços anteriormente ocupados por terrenos e casarões, a metáfora do espigão é muito bem apropriada no espetáculo, ganhando mais sentido no desenvolvimento das cenas, especialmente nos momentos em que os irmãos discutem seus pontos de vista diante da relação vivida com a namorada. Sem dúvida, a narrativa fabulada pelos atores vai tirando a poeira deixada e/ou escondida debaixo dos tapetes. Os atores-personagens vão se “desnudando” diante do público presente, desvelando seus afetos e momentos íntimos que esconderam por muito tempo como o bilhete-carta trocado entre a irmã e a namorada, Fernanda. Aqui, o “bilhete-carta” pode ser lido como um lugar de memória e o signo responsável pela criação do grande Espigão que move a história dos irmãos.
Por que recuperar memórias pessoais e coletivas para legitimar uma história e/ou experiência vivida? Quais os intervalos lacunares são – ou podem ser – preenchidos pelas narrativas/dramaturgias autoficcionais na nossa contemporaneidade?
A dramaturgia de O Espigão de Gabriel Morais me impele a fazer essas e outras perguntas às quais eu, no momento, não tenho respostas, mas que me movimentam e, acredito, que também moveram o público que esteve presente no apartamento da Rua Gama Cerqueira do bairro Jardim América, em Belo Horizonte, às 18 horas, no sábado, dia 21 de outubro de 2023.
Ficha Técnica:
Realização: Coletivo Você e Eu
Direção: Caio Riscado
Dramaturgia: Gabriel Morais
Atuação: Gabriel Morais e mariah miguel
Direção de arte: Júlia Deccache
Iluminação: Livs
Arte gráfica: Davi Palmeira (A4)
Assistência de direção: Igor Gonçalves e Maria Luísa Grimaldi
Concepção: Gabriel Morais e mariah Miguel
Instagram: @o_espigao