* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
– por Soraya Martins –
Reflexões e expansões a partir do espetáculo Fala das Profundezas, do Núcleo Negro de Pesquisa e Criação
Hoje acordei querendo escrever sobre ficções. Principalmente sobre aquelas que carregam tanto um futuro que alguém sonhou para mim, anos atrás, quanto o futuro que sonho para várias pessoas, daqui para a frente, com a certeza de que, lá na frente, haverá espaços para coisas que eu nem imaginei.
Uma vez, Frantz me perguntou, entre uma xícara e outra de café e vários pães de queijo:
– “Como sair desse impasse?”.
Cada vez mais, gosto de inventariar memórias e ficções. Acredito que elas, ficção e memória, nos dão a oportunidade de construir espaços e saberes, reelaborar temporalidades e nos permite dedicar a um desejo. Ah! O desejo! Aquele que imprime uma “marca nos afetos e conflitos humanos”!
– “Alguns negros querem demostrar aos brancos a riqueza de seu pensamento, a potência do seu espírito”.
Fotos de Thais Namai
O espetáculo Fala das Profundezas, com dramaturgia e direção de Gabriel Cândido, traz para o palco-arena um jogo jogado entre atores e atrizes, ou seja, um teatro de diálogos, de rede de relações, olho no olho, silêncio, ritmo, o dito e o não dito, cena e contracena, sem as palavras de ordem, os microfones e as projeções tão típicos do “teatro contemporâneo”. O que é ser contemporâneo? A presença da atriz e do ator é inegociável nesse teatro, que cria (Leda, com broa de fubá, se adentra na conversa entre Frantz e eu) “um combate semântico e semiótico entre imagens, enunciados, enunciações e convenções, traduzindo, ainda, no palco, a coreografia do desejo”.
O desejo em Fala das Profundezas se traduz pela fabulação e criação de rotas de fuga como possibilidade de ser e estar preto em cena e no mundo sem ter que criar para dar respostas ao branco. O desejo, aqui, se instala e se interessa pela produção de outros mundos possíveis, não quer mais ficar performando exclusivamente o racismo estrutural, a dor e as mazelas. Tudo isso existe. É a nervura do real. Mas a ficção nos permite reelaborar existências e mundos. A mediação estético-criativa é também para isso, não?
Ainda sobre o desejo: há, no espetáculo, a repetição de um gesto que salta aos olhos. Todos as atrizes e atores o fazem:
escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e escavar e
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O gesto feito à exaustão reverbera no corpo das atrizes e atores, que, nas profundezas de um mundo forjado na lógica da desumanização, procuram (es)cavar, nem que seja pela força do desejo, a criação de outro destino para os corpos da negrura. A repetição espetacular desloca o horizonte de expectativa do público, uma vez que faz surgir, para o mesmo significante, significados novos que vão, paulatinamente, inscrevendo a performance em quereres fabulares.
E o amor?
O amor entre duas mulheres impulsionado pelo sonho de sonhar juntas “rio cor verde esmeralda”. Impulsionado pela vontade de fazer aflorar outros sentidos para o verbo amar (individual e coletivamente), para os corpos femininos da negrura. Esse amor é desenhado – via jogo de luz, texto dramático, silêncios e gestos – para dar a ver subjetividades e singularidades que são da ordem do humano.
O amor entre um grupo de pessoas que atualiza a noção de aquilombamento que, como gosto de pensar, diz não somente da reunião de corpos negros, mas, antes, de um ato de juntar para criar e transformar, ir além, contar e recontar, recarregar os signos de sentidos e produzir histórias e genealogias da diáspora negra dentro de uma História do Brasil ainda a ser feita. Aquilombar é movimento, é a criação de possibilidades outras de existir e se relacionar. É a reunião de corpos em transbordamento, corpos em ação, que são. Distribuição de terras. Distribuição de comida. De afeto. De sonho. Ou o amor pensado na sua dimensão política (bell me sussurra), numa discussão que compreende o amor como uma força radicalmente poderosa que desafia, resiste e inventa caminhos de fuga à dominação.
Tudo tecido no exercício de cada atriz e ator – Ellen de Paula, Maria Gabi, Tásia d´Paula, Deni Marquez e Fábio Lopes – viver a cena. O teatro ainda e sempre é a arte das atrizes e dos atores.
E, mais ainda, sobre o desejo: “é o motor de todo sujeito e de qualquer relação pessoal, íntima ou social. Sua coreografia desenha o percurso dos indivíduos e dos grupos sociais, imprimindo uma marca nos afetos e conflitos humanos” (sempre ela, Leda).
Fala das Profundezas deseja abertamente e chama o público para (re)distribuir terras e imaginários. “A nossa importância é nossa!”. A arena-palco é palco para um debate, em que po[ética], ética e est[ética] estão e são indissociáveis e a dimensão pública dos processos socioculturais brasileiros atualiza o fazer teatral.
– “Pra fugir desse impasse, é preciso falar”. Diz Frantz pedindo mais café. “Falar é estar em condição de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, e, sobretudo, assumir uma cultura”.
– “Falar para existir”. Digo, baixinho, para mim mesma. Minha fala-sussurro rapidamente é seguida pelos dizeres de Leda, que assim fecha, ou melhor, abre a conversa para ainda mais infinitos.
– “É pela epifania da linguagem e na linguagem que o ser se torna imanente”.
É a partir das falas ecoadas das profundezas que se dá o reconhecimento da alteridade como valor de fundação, presentando uma linguagem que canta a potência do verbo e do corpo como forças motrizes.
Ficha Técnica:
Dramaturgia e direção: Gabriel Cândido.
Elenco: Deni Marquez, Ellen de Paula, Fábio Lopes, Maria Gabi e Tásia d’Paula.
Produção executiva: Kauanda.
Assistência de produção: Maria Gabi.
Coordenação de produção: Gabriel Cândido.
Trilha sonora original e operação de som: André Papi.
Desenho de luz: Natália Peixoto.
Operação de luz: Leonardo Carvalho.
Preparação vocal: Maria Gabi.
Preparação corporal: Lilian Martins.
Orientação vocorporal: Luciano Mendes de Jesus.
Figurinos: Carla Stela.
Trançadeira: Paola Ferreira.
Maquiagem: Rapha Cruz.
Contrarregragem: Amanda de Jesus, Euzilene Ribeiro e James Christofher.
Produção audiovisual: Jerê Nunes e Thais Namai.
Intérpretes de Libras: Quilombo que Sinaliza.
Participação especial / vozes off: Bruna Candido, Carla Stela, Dirce Thomaz,
Diogo Guedes, Fabiana Neves, Fagner Lourenço, Jerê Nunes, Kauanda, Luís
Antonio Candido, Natália Peixoto, Marcela Coelho, Paola Ferreira, Sueli Aparecida
Costa, Sueli Candido e Vera Lúcia de Oliveira Lima.
Social media: Anderson Vieira e Ayrá Ludovico – Teatro Já.
Assistência de redes sociais: Deni Marquez.
Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação.
Projeto gráfico: Wellingthon Tadeu.
Catering: Cozinha Fermenta.
Realização: Núcleo Negro de Pesquisa e Criação (NNPC).