Ficções Sônicas 02: Feitiço vista no Cine Santa Tereza, em Belo Horizonte, durante o FENDA – Festival Experimental de Artes Fílmicas em maio de 2022 e no FICValdivia – Chile em outubro de 2022.
– por Victor Guimarães –
No texto que forma parte de sua instalação Evil.27: Notes from Selma (2009), o artista norte-americano Tony Cokes compara dois eventos políticos emblemáticos da história do século XX: o Boicote aos ônibus de Montgomery em 1955 e o homem em frente aos tanques na Praça Tiananmen em 1989. Na década de 1950, em uma sociedade de transição entre a predominância do rádio e o domínio vindouro da televisão, não são feitas imagens sobre as ações lideradas por Rosa Parks. Mas, contrariamente ao que poderíamos pensar, sua eficácia impacta decisivamente nas duas décadas seguintes, servindo de inspiração para a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Suas intervenções funcionam “não como atos de imagens comprobatórias, mas como material mítico não visível, os rudimentos invisíveis para um vernáculo de possibilidade”, nos diz Cokes. Em contrapartida, o acontecimento chinês, cujas imagens correram um mundo dominado pela televisão, paradoxalmente, produz uma espécie de anestesia: a colonização da visão produz uma sensação de que “alguma coisa já foi feita”, e nada de relevante ocorre na vida social sob o impacto dessas imagens. Para Cokes, “transformações mentais coletivas podem nem sempre vir acompanhadas por imagens e evidências. (…) É mais provável que a não visibilidade produza a visibilidade mais revolucionária de todas, e nós seremos pegos de surpresa”.
A defesa de uma invisibilidade revolucionária por Tony Cokes se comunica com um livro recente de Brandon LaBelle, Agência Sônica, em que o teórico propõe um pensamento do som para reimaginar as possibilidades de insurreição hoje. Para LaBelle, diante de uma esfera pública construída sob o modelo da visibilidade e da representação – e que foi sequestrada –, é preciso pensar “a audição como base para uma atividade insurrecional, uma comunidade vindoura”, que teria seus fundamentos nas figuras do invisível, do entreouvido, do itinerante e do frágil, todas elas imaginadas a partir de uma teoria política do som. Com seu conceito de agência sônica, ele vislumbra “uma escuta profunda e experimental, uma escuta na escuridão” que se desdobra em “uma estrutura de suporte para práticas emancipatórias, inserindo na esfera do poder dominante uma acústica do devir social de acordo com os ritmos e as ressonâncias que ouvir e ser ouvido evocam”.
Encontro em Tony Cokes e Brandon LaBelle ressonâncias de ideias-formas que me foram sugeridas pela escuta-visão das ficções sônicas de Grace Passô, e especialmente pela mais recente obra da série, a peça-filme Ficções Sônicas 02: Feitiço, concebida inicialmente para a Internet, mas que começa a circular em salas de cinema. Cinema, aliás, que parece ser o lugar ideal para as opacidades vibrantes e os silêncios escuros fabricados pelo feitiço mais recente de Grace. Em meio à multidão de hibridismos entre as artes da cena e as mil plataformas virtuais a que nos acostumamos durante o isolamento, o que o retorno à sala de cinema pode fazer por uma obra como Ficções Sônicas 02: Feitiço? Como as qualidades específicas e as intensidades únicas que se produzem na escuridão compartilhada de uma sala de cinema podem nos fazer experimentar diferentemente o trabalho de Grace?
Ficções Sônicas 02: Feitiço começa com um plano subjetivo muito baixo, acompanhado pelos ruídos da respiração de um cachorro. Nos arredores do Theatro Municipal de São Paulo, vemos a cidade ao rés do chão, enquanto ouvimos essa sonoridade animal que nos instala no mundo da obra. A perturbação da escala da visão produzida pela tela grande do cinema, associada ao volume sobre-humano dos alto-falantes, faz com que esse devir animal nos impacte de uma maneira que não seria possível na telinha do celular ou mesmo nas telas de nossos televisores ou projetores domésticos, com a cotidianidade da casa sempre à espreita, logo ali ao lado.
O cachorro entrará na igreja (perdão, no teatro), será recebido por um ator (“você veio!”) e a partir daí o trabalho Ficções Sônicas 02: Feitiço será composto por uma série de experimentos cênico-audiovisuais que giram em torno de um interesse comum: o que a especificidade da experiência negra pode produzir em termos de novas opacidades artísticas? “O preto é como o som”, “ninguém me decifra”, “esse é o nosso feitiço”, são frases que volta e meia escutamos novamente, como um mote a contaminar as performances e as intervenções da edição e do desenho sonoro. Como diria Édouard Glissant, a diferença não como obstáculo a ser superado, como hiato a ser preenchido a golpes de transparência, mas como potência de relação a partir da opacidade. É assim que muitas vezes o que começa no palco – a interação dissonante entre voz e guitarra, por exemplo – reverbera no modo como a montagem fragmenta, desconstrói e rasura a imagem, tornando-a menos transparente, ou na maneira como o desenho sonoro ressalta os ruídos e as distorções. Na sala de cinema, essas intervenções na imagem e no som crescem em escala, e se tornam fundantes de uma experiência visual e sonora muito diferente do que as outras telas permitem.
Na tela grande a superfície se torna mais tátil e cada detalhe ganha em relevo. Não para ver mais, nesse caso, mas para ver menos com mais intensidade. É como se o projetor e a tela se tornassem uma outra presença física e material, igualmente importante, que traduz a presença dos corpos em cena. Mas essa tradução não é nunca uma transposição transparente: ao rasurar a imagem e o som captados por essas máquinas centenárias de produzir efeito de real, o que o trabalho traz para o primeiro plano da experiência é justamente a opacidade presente na mediação audiovisual. Autofalantes e telas não como acessos irrestritos a algo que está lá, no teatro filmado, mas como multiplicadores de opacidades intraduzíveis.
Os espaços escuros do Theatro Municipal, ressaltados pela iluminação contrastada, reverberam na caixa preta que é a sala de cinema, onde a escuridão convida à opacidade. Se o teatro foi pensado como o lugar do convívio e da troca franca entre atores e plateia, o cinema a princípio é o lugar de uma cisão radical entre os corpos na tela e os corpos espectadores. Mas essa caixa preta reduplica as opacidades inventadas por Grace porque também é o lugar onde a diferença radical é o pressuposto de uma outra comunidade possível: vemos um filme sozinhos, mas na sala de cinema essa solidão se torna povoada, e essa comunidade provisória é sempre feita de uma comunhão invisível com a vizinhança da poltrona ao lado, de quem não sabemos nada. O espectador desconhecido que ocupa o mesmo espaço-tempo durante a projeção é um mistério, mas é justamente desse enigma material que é feita toda sessão de cinema: uma relação a partir da opacidade, portanto.
A peça-filme de Grace Passô inventa muitas maneiras de trabalhar o som em sua riqueza dissensual e polifônica. Num dos momentos mais impressionantes, um lápis que escreve “Naná” (em referência a Naná Vasconcelos), repetidas vezes num papel, se torna instrumento percussivo, criando ritmo e transformando, literalmente, o ato da escrita em música. É dessas modalidades de contaminação entre formas que Ficções Sônicas 02: Feitiço será feito. Noutro momento, um coral adentra o palco a partir de um elevador, mas o canto regido pela maestrina não é feito de palavras, e sim de respirações. Por debaixo das máscaras antivirais, integrantes do coral inspiram e expiram num ritmo preciso, e fazem dessa impossibilidade de emitir um som que não seja o da respiração uma outra possibilidade – novamente opaca – de música.
Som é vibração. E vibrar junto é muito diferente de vibrar sozinho. É por isso que os ruídos de passos, as vozes enigmáticas, a percussão, as guitarras distorcidas, o saxofone gritado, as respirações interrompidas, todos esses sons escuros reverberam na sala povoada e produzem uma espécie de comunidade ouvinte provisória fundada na diferença. “Renunciar à velha assombração de compreender”, nos diz uma voz. E o escuro silencioso da sala faz escutar melhor a espessura do mistério que não se pode decifrar. Isolada do mundo lá fora e dos sons intrusos de nosso cotidiano que invadem tudo quando estamos diante das outras telas, a sala de cinema é o lugar propício para que essa modulação constante do som efetuada por Ficções Sônicas 02: Feitiço nos atinja em cheio. O desenho sonoro e os autofalantes operam como a maestrina de respirações fracassadas do coral: num ritmo preciso, regem nossas respirações, modulam nossas maneiras de vibrar junto sem decifrar nada.
A experiência de Ficções Sônicas 02: Feitiço numa sala de cinema é uma aposta na opacidade multiplicada da tela, das caixas de som, da escuridão, da comunidade entre desconhecidos. Esse espaço-tempo tão específico reduplica o trabalho da peça-filme, como se fosse possível, agora, experimentar o próprio dispositivo cinematográfico de outra maneira. Diante dessa obra impura, que traduz percussão em escrita, discurso em dança, respiração em música, o espectador de cinema tem a chance de experimentar, ainda que por uma hora, uma relação baseada não na pulsão escópica e no afã por informação sonora, e sim na partilha de intensidades intraduzíveis.