Crítica do espetáculo Enquanto você voava, eu criava raízes, apresentado na mostra Lúcia Camargo, no âmbito do Festival de Curitiba de 2023
– Por Guilherme Diniz –
No universo pictórico, o trompe l’oeil nada mais é do que um conjunto de recursos manejado por artistas visuais para alterar a percepção do observador, engolfando o seu olhar em ilusionismos bastante calculados. Tais técnicas, em suma, seduzem a vista, criam perspectivas hipnóticas, brincam com os limites e as potencialidades do olho humano. O espetáculo Enquanto você voava, eu criava raízes, da Cia. Dos à Deux, habita esta dimensão, ao orquestrar imagens e atmosferas capazes, pelo desenho das formas, de nos fazer embarcar em uma viagem intensamente encantatória. A sensação dominante, ao longo do espetáculo, é a de termos adentrado um mundo onírico no qual símbolos, cores e movimentos se desdobram livremente, obliterando significados imediatos ou nexos causais. As leis científicas já não fazem sentido, pois é a própria fantasia que, envolventemente, determina as coisas. Nesse terreno, os corpos parecem flutuar, se desmaterializam, bailam como plumas ao vento. Este trompe l’oeil cênico ganha a cada momento camadas novas e o nosso desejo, como espectadores, é deixar com que a poesia nos fascine cada vez mais a fim de vermos até onde nossas ilusões podem nos levar.
Esta introdução, ainda que um tanto lírica demais, se alinha perfeitamente à concepção de Enquanto você voava, eu criava raízes, pois uma de suas características mais marcantes é o modo como o espetáculo estimula o público a fazer livres associações imagéticas. Os performers André Curti e Artur Luanda Ribeiro se deslocam durante a maior parte do espetáculo em uma enigmática estrutura circular cuja parte frontal funciona como uma grande tela. É nesta plataforma que as gestualidades tão fluidas, somadas a uma precisa iluminação, criam imagens e deslocamentos altamente sugestivos. Ali vemos um relógio, uma zona aquática e seus espelhamentos, um útero, um portal mágico, um espaço sideral desprovido de gravidade e até mesmo um enorme globo ocular. As possibilidades são infindáveis, a depender da disponibilidade do espectador para aceitar os estímulos propostos.
Corporeidades e luz se fundem circundados por um breu profundo. As qualidades de movimento dos dois artistas em cena exibem um virtuosismo técnico. Nesse sentido, a noção de dramaturgia do corpo é bastante cabível aqui, pois a corporeidade, com seus tempos, tensões, dinâmicas e amplitudes, é um dos mais fortes pontos de articulação de sentido neste espetáculo. Os corpos não são apenas expressivos, mas construtores de pensamento e de narrativas no desenvolvimento de seus gestos. A poética de André Curti e Artur Luanda está vivamente incrustada nos corpos, cujas ações, estruturam os caminhos do espetáculo.
O uso milimétrico de projeções sobre os dois corpos é responsável por um dos momentos mais sensíveis da peça. Neste trecho, as fronteiras entre virtualidade e fisicalidade parecem desaparecer por completo na medida em que a presença carnal dos dois atores vai sendo gradualmente subtraída por incontáveis pontinhos luminosos. Por um breve instante, mergulhado naquele recurso, cheguei a duvidar do que via. Os dois artistas pareciam pura imagem descarnada. Contudo, na sessão a que assisti, uma falha técnica, que interrompeu intermitentemente a projeção, impediu que a cena alcançasse ainda mais a sua plenitude simbólica.
Ainda que o aspecto visual seja determinante, não se pode menosprezar a dimensão sonora na construção das muitas ambiências no palco. As músicas, neste espetáculo, não atuam como um guia ou um fio condutor a estruturar enredos, mas delineiam novas camadas de sentido, além de potencializar os tênues trânsitos entre dança, teatro, performance e artes visuais; aliás, uma característica marcante no trabalho desta Cia.
Fotos: Virginia Benevenuto
A essa altura, vocês, leitores e leitoras, podem estar se questionando sobre o que o espetáculo efetivamente discute, quais são seus temas ou campos de discussão. Esse ponto é quase totalmente secundário em Enquanto você voava. Não pretendo advogar a favor de uma tematização engessada, proselitista ou que limite as experimentações formais, mas a impressão que se tem é que o espetáculo, em alguma medida, é filho de um esteticismo bem tardio. Resumindo muito, o esteticismo, na qualidade de movimento (para alguns não foi mais que uma tendência) artístico-cultural, do final do século XIX, valorizava a forma sobre o conteúdo, a Beleza (com “b” maiúsculo mesmo) sobre o utilitarismo ou o didatismo, priorizando, acima de tudo, o deleite estético na apreciação da forma e do estilo. Debates históricos, éticos e políticos são colocados em segundo plano. A postura ideal do fruidor nesse contexto é seguramente a contemplação.
Esses traços não definem, de modo absoluto, a peça em questão, mas constituem, ao que me parece, elementos muito significativos da sua concepção. A própria sinopse da obra vai nessa direção ao usar termos bem gerais como “metafísica”, “abismos”, “mistérios”, “onirismo”, “poesia” e “renascimento”. No bate-papo após a apresentação, os dois artistas disseram que inicialmente a obra versaria sobre o medo e, no decorrer do processo criativo, perceberam que o impulso central era pura e simplesmente o amor.
Tais informações, postas ao lado do espetáculo em si, o situam em um alto grau de abstração. Quando observamos este tipo de criação, em um determinado contexto cênico de pesquisa poética e política, sentimos um distanciamento, como se Enquanto você voava… estivesse quase totalmente descolado da nossa realidade concreta e imediata. O belo jogo coreográfico, a virtuose física, os desenhos de luz, o delineamento de formas, além dos gestos tão metafóricos e mitológicos mesmerizam o espectador, estabelecendo sobre ele aquele mesmo efeito que um Brecht, por exemplo, via com desconfiança, isto é, uma sedução hipnótica que, ao arrebatar sensorialmente o público, o afasta de uma reflexão histórica mais concreta (ou direta) dos dilemas incandescentes do nosso tempo. Esta sensação se torna mais aguda quando analisamos os percursos curatoriais do Festival de Curitiba em 2023. Ao lado de tantas discussões profundas sobre racismo, eugenia, colonialismo, apagamentos históricos, violências de gênero, etc, este trabalho da Cia. Dos à Deux soa apolíneo demais, olímpico demais, como se estivesse a encarar a realidade concreta a partir de uma distância infinita. Talvez estejamos excessivamente afetados por uma cena que mergulha mais diretamente nas contradições do real, nas suas políticas e nos problemas estruturais do mundo. Enquanto você voava… nos dá um merecido descanso, um sadio refresco ou flerta com um certo alheamento da realidade?
Assim como outros trabalhos programados para o Festival, este também foi atravessado pela pandemia. Além de o processo criativo ter se desenvolvido, por muito tempo, em isolamento social, a equipe sutilmente incluiu uma nota melancólica nas imagens da peça, fazendo uma leve referência à angústia daquele doloroso contexto. Ademais, neste momento de retomada e de reconstrução do setor cultural, a Cia. Dos a Deux celebra 25 anos de existência. Quem já conhece outras criações da dupla poderá não se surpreender drasticamente com Enquanto eu voava…, mas terá motivos de sobra para festejar a longevidade de uma cia. que, há muito, alia o rigor e o afeto em um projeto artístico minucioso.