– Por Felipe Cordeiro –
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
O espetáculo Let’s play that ou Vamos brincar daquilo é um solo do ator Tuca Andrada, que também assume as funções de dramaturgo e diretor – dirigindo em coautoria com Maria Paula Costa Rêgo. A peça, que esteve em cartaz durante o mês de março, no Teatro Hermilo Borba Filho, em Recife, aborda a vida e obra de Torquato Neto (Teresina, 1944-1972).
Durante sua curta vida, o artista piauiense atuou em diferentes mídias como poeta, letrista, crítico de arte e jornalista. Torquato é considerado uma das principais figuras do movimento Tropicalista e é justamente por essa via que seu trabalho se tornou mais conhecido no país. São de sua autoria as letras de “Mamãe Coragem” (com Caetano Veloso), “Marginália II” e “Geleia Geral” (ambas com Gilberto Gil), além de ter sido coautor de canções emblemáticas do repertório de Gal Costa, como “Três da madrugada” (com Carlos Pinto), “Lost in the Paradise” e “Nenhuma dor” (com Caetano). Essa última deu nome ao derradeiro disco da cantora baiana. Também o próprio nome do espetáculo de Andrada é inspirado na canção “Let’s play that”, escrita por Torquato e Jards Macalé. Conforme conta esse último:
“Torquato Neto, volta e meia, se internava em uma clínica para uma recuperação de bebida, essas coisas, e quando ele saía de algumas dessas internações, ele passava na minha casa. Eu tinha sempre umas balinhas que ele adorava e eu guardava para quando ele viesse. E, numa dessas saídas, ele apareceu lá em casa e me deu a letra de ‘Let’s play that’, já escrita, batida à máquina, para eu musicar. Ela até é uma alusão a um poema de Drummond de Andrade (referência ao Poema de Sete Faces). E aí na hora, em uns quinze minutos eu musiquei ali, enquanto Torquato comia as balinhas que tanto gostava. Quando viu a música pronta, ele até brincou comigo: ‘pô, você está colocando música clássica na minha letra’. Isso foi em torno de 1969, no Rio de Janeiro, e quando eu gravei meu primeiro disco em 1972, eu coloquei a música ‘Let’s play that’. A música é um símbolo de Torquato, que é conhecido como o ‘anjo torto’. Musicar ela foi até natural, nós depois fizemos algumas outras músicas. Mas essa foi a primeira que fizemos juntos e, nada melhor do que musicar o anjo torto, com o próprio anjo torto do lado”.[1]
Jards Macalé e Torquato Neto. Foto do acervo Torquato Neto.
Uma vez que o trabalho de Torquato como letrista é uma das peças centrais de seu quebra-cabeças artístico, a obra de Andrada também flerta ostensivamente com esse universo. Dirigido musicalmente por Caio Cezar Sitonio, que executa a trilha ao vivo junto com o músico Pierre Leite, o espetáculo é conduzido de forma a ressaltar a beleza da voz de Tuca, que apresenta com versatilidade todos os números musicais, variando ritmos, intenções e densidade dramática. Fato que, ironicamente, dissona da própria trajetória de Torquato que, segundo amigos e parentes, cantava extremamente mal. Segundo Tom Zé, ele conheceu poucas pessoas na vida que não conseguiam nem entoar, nem cantarolar uma música, e Torquato era uma delas.
Em entrevista, Tuca Andrada afirmou que “contar simplesmente a biografia de Torquato Neto de forma linear, cronológica, da maneira como muitos artistas são biografados hoje pelo teatro brasileiro, nos parecia uma traição à memória do poeta. Por ser o artista que foi, ele exigia de nós uma outra abordagem”.[2] Para atingir esse objetivo, além das apresentações musicais, a produção se apresenta como um híbrido de sarau, jogos teatrais, palestra e stand up. Com duração de cerca de 90 minutos, a peça é apresentada em formato de arena, com o próprio ator recebendo e acomodando os espectadores e, ao final da encenação, conduzindo um debate sobre possíveis dúvidas ou interlocuções com a plateia.
Apesar de a ficha técnica não trazer a função de dramaturgo, dramaturgista ou afins, com base em relatos da encenação e de matérias jornalísticas, sabe-se que o texto é oriundo de uma pesquisa do próprio ator, que teve início nos anos 2000, quando cruzou com o livro Torquatália, de Paulo Roberto Pires. A função rapsódica é assumida por Andrada com muita seriedade e baseada em múltiplas memórias de arquivo referentes a Torquato Neto. Além dos registros em livros, documentários, revistas, entrevistas e outros, a obra apresenta inserções do único áudio público com a voz do tropicalista.
O texto dramatúrgico, embora seja sedimentado em uma extensa pesquisa documental, apresenta poucas linhas de força e pontos de vista que o distanciem da biografia linear, problematizada por Andrada em entrevista. A estética do fragmento e das variadas formas de cena são disruptivas, mas, por não apresentarem pontos de vista insuspeitos ou mesmo não dilatarem os pactos do real, contam a história do biografado da forma como já a conhecemos: com os principais fatos e – a partir de certo ponto – narrada com início, meio e fim.
Não obstante, o epílogo do espetáculo, que acontece quando o ator abre a cena para diálogos com a plateia, na sessão a qual estive presente, inaugura caminhos e pontos de vista particulares, que vão além do que já foi dito sobre o artista de Teresina. Foi o caso de um espectador que se mudou para uma rua chamada Torquato Neto e, a partir disso, conversando com o porteiro de seu prédio, pôde acessar sua produção artística e, posteriormente, este espetáculo.
Outro ponto de destaque dessa seção final da obra foram as reflexões produzidas por Andrada sobre o suicídio de Torquato – que ele deixa claro ser uma visão pessoal –, bem como sua atuação na revista Navilouca. A publicação sobre poesia e arte de vanguarda, editada por Torquato e Waly Salomão, foi idealizada em 1971, mas, por falta de recursos, só veio à luz em 1974, quando Torquato já estava morto. Com a ajuda de Caetano Veloso, que intermediou o contato entre Waly e André Midani, executivo da Polygram, foi possível que a revista fosse editada e distribuída como brinde de Natal aos clientes da gravadora. Entre seus colaboradores figuraram nomes ilustres como os irmãos Campos, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Chacal e muitos outros.
IMAGEM: Revista Navilouca. Reprodução.
Esse trecho final, em suma, permite a renovação do espetáculo a cada sessão e ainda coloca o ator em um jogo constante de improviso. Além disso, é a ocasião na qual as pessoas podem tirar dúvidas e fazer críticas ao que foi visto. Essa ação demonstra tanto uma responsabilidade ética da equipe com o resgate da memória de Torquato quanto a segurança e capacidade de improviso de Andrada ao lidar com a complexidade de sua criação.
De um modo geral, a dramaturgia de Let’s play that ou Vamos brincar daquilo cumpre com sua intenção primordial, que é instigar o público a pensar sobre Torquato e junto com ele. Não há nenhuma pretensão de se criar um espetáculo dramaturgicamente experimental e de vanguarda. Logo nas primeiras linhas Tuca já prenuncia: “Boa noite. Eu, absolutamente, não sabia como começar esse espetáculo”. A partir disso, ele retoma seu encontro com o livro que intensificou todo o flerte com Torquato – artista que ele já conhecia, porém superficialmente.
Um dos realces do texto é a capacidade que Andrada tem, graças à sua experiência como ator em distintas plataformas cênicas, de aglutinar referências intermidiáticas do cinema, teatro, literatura, rádio, artes visuais, cultura pop, jornalismo, para-choque de caminhão e tudo mais que fizer sentido para que se compreenda a produção de Torquato.
Por consequência desse amálgama, o humor, presente em algumas contextualizações histórico-culturais da vida do artista piauiense, duplamente diverte e sugere pistas ao espectador:
“Segura um pouquinho aí. Eu tenho que dar uma paradinha aqui pra falar o que era a Cidade do Salvador no começo da década de 60, quando Torquato saiu de Teresina e foi estudar lá. Gente, era um babadoooooo! Gil, Alvinho Guimarães, Gal, Duda Machado, Helena Ignez, Lina Bo Bardi, Glauber Rocha, Antonio Pitanga, Rogerio Duarte, Othon Bastos, Tom Zé… Caetano, Capinam, Koellreutter, Bethânia, Dedé… Eu acho que tinha mais artista nessa época em Salvador que baiana vendendo acarajé. E muito disso por graça e obra de um homem, um professor, reitor da Universidade Federal da Bahia, o senhor Edgard Santos… Sujeitinho perigoso. Veio com umas estorinhas de juntar as atividades acadêmicas das faculdades convencionais com escolas de música, dança, teatro… resumindo: COMUNISTA. Desvirtuando os nossos jovens para atividades subversivas no tocante a pátria, a família e a DEUS que está acima de todos”.[3]
Esses ensejos não apenas propõem um panorama do contexto sociocultural daquelas décadas como também ativam uma linguagem leve e descontraída, capaz de transmitir ao público informações embrionárias sobre a formação de alguns dos principais movimentos artísticos brasileiros do século XX. Além da importância da Tropicália, por exemplo, o espetáculo se apresenta como um documento histórico que revisita a história de um artista que não chegou a colher os longevos louros do movimento, em decorrência de ter interrompido sua própria vida há 50 anos.
Frequentemente, a Tropicália é associada a Caetano, Gil, Gal, Os Mutantes e Tom Zé, figuras que permanecem relevantes até os dias de hoje. No entanto, não se pode esquecer da importância de Torquato e Rogério Duarte nesse processo. Em entrevista, Gil reconheceu que a elaboração reflexiva, aspecto crucial do Tropicalismo, era coisa de Torquato, Rogério e Caetano, enquanto ele próprio estava mais ligado à execução musical.
Ademais, para além da Tropicália, a atuação de Torquato Neto no cinema brasileiro foi significativa, sobretudo durante a época da contracultura e do cinema marginal. Ele se destacou como uma voz crítica à institucionalização do Cinema Novo, que, segundo sua visão, havia se tornado um movimento oficialista e burocrático. Com sua escrita criativa e sua postura subversiva, contribuiu para a discussão sobre a renovação do nosso cinema, ampliando as perspectivas de um movimento que buscava romper com os padrões estabelecidos pelo sistema vigente.
Conforme escreve Márcio Bastos, em reportagem para a Revista Continente:
“Resgatar esse caráter vibrante de Torquato Neto, sem desconsiderar as dificuldades enfrentadas pelo poeta, como a depressão e o alcoolismo, foi uma diretriz assumida pelos envolvidos na produção. Sua poética é apresentada como viva, pulsante, aberta ao jogo constante de reinterpretação e de ser completada por quem a atravessa. Por isso, em cena, Tuca se lança em um trabalho corporal intenso, performático, resultado de uma pesquisa que contou com o apoio de Maria Paula Costa Rêgo, sua amiga e codiretora. Coreógrafa e bailarina, fundadora do Grupo Grial de Dança, ela conhece Tuca desde a adolescência, quando ambos estudavam no Colégio Contato, no centro do Recife.”[4]
O trabalho técnico realizado pela dupla Tuca e Maria Paula dá corpo e suor à figura de Torquato, acionando todo o repertório construído pelo ator ao longo de uma carreira de cerca de 40 anos. Valendo-se de um cenário composto por um tamborete e centenas de folhas A4 espalhadas pelo chão, é o corpo de Tuca o principal elemento disparador dos jogos cênicos. Os papéis avulsos são também programas do espetáculo, trechos de cartas, poemas e músicas de Torquato. Um dispositivo simples, mas não simplório, que evoca tanto a marginalidade do artista quanto possibilita a manipulação do público e do ator. Ainda durante a encenação, busquei pelo papel que continha a carta escrita por Torquato a Ana Maria Duarte, seu grande amor, em 9 de setembro de 1966, quando ambos estavam se apaixonando. Assim, acabei levando comigo uma parte da cenografia, aquele recorte epistolar que acabara de ser apresentado instantes antes.
IMAGEM: Cred. Ashlley Melo
Outro elemento proeminente da produção é a criação de luz de Natalie Revorêdo, que multiplica as possibilidades da cena, ao fazer daquele palco seminu uma arena que evoca tantos lugares, situações, ou mesmo oscila da alegria dos corpos que dançam ao luto imposto por um suicídio. A dramaturgia de luz, atrelada à interpretação de Andrada, colabora com a transmissão de emoções e experiências singulares do universo torquatiano.
A despeito do espaço de intimidade que é criado, seja pela proximidade do ator ou mesmo pela disposição cênica da pequena sala, o espetáculo é todo microfonado. Cenicamente, com exceção dos números musicais, o uso do microfone não apresenta nenhuma função interpretativa. É comum em projetos de teatro contemporâneo que os acessórios eletrônicos assumam nuances dramatúrgicas a fim de não apenas amplificar a voz dos atores, mas criar outras ambiências sonoras, trazendo novas leituras para vozes, personagens ou mesmo tensões entre a substância ficcional e os arquivos do real. Do ponto de vista da fruição, percebo que o microfone headset, aliado à arena, atrapalhou o entendimento de diversas partes do texto, fato que também foi confirmado por outros espectadores. Como o intérprete ocupava muito bem todos os pontos de cena, criando uma atuação multidirecional, corporalmente ativa e com ritmos de fala acelerados em determinados instantes, a audição da dramaturgia acabou sendo ofuscada.
Embora essa questão técnica não tenha sido favorável ao contexto, o ritmo do espetáculo permanece bem orquestrado durante toda a encenação. Com efeito, interpretação, canto, coreografia, partitura corporal, iluminação, cenografia, trilha sonora e silêncios, estimularam as diversas alternativas cênicas do teatro. Há ainda as ocasiões em que não só o ator e a equipe, mas também o público atuou de maneira a dinamizar o ritmo da obra. É o caso da ciranda que Tuca e a plateia dançam juntos, evocando a tradicional dança comunitária pernambucana. Esse ato instiga o contato dos presentes, ao mesmo tempo em que celebra a brincadeira, a vida e suas expressões artísticas.
Let’s play that ou Vamos brincar daquilo é um espetáculo que não só apresenta a biografia do poeta Torquato Neto, mas também a problematiza socialmente, com foco em sua atuação política e subversiva. O texto dramatúrgico traz à tona momentos tenebrosos da nossa história política, como a ditadura militar que diretamente afetou a saúde física e mental do artista. Entretanto, a peça também joga com a esperança desse novo ciclo histórico que estamos presenciando, trazendo à cena a inquestionável importância de Torquato para o público contemporâneo.
Enquanto o ator canta, dança e brinca com um parangolé, a luz sutilmente cai devagar até o blackout. É interessante notar que o uso do parangolé como elemento cênico remete à obra de Hélio Oiticica e sua visão de arte como experiência sensorial, mas também nos leva a refletir sobre a visão rupturista de Torquato Neto sobre a arte. Sua atuação política e seu engajamento em movimentos culturais como o Tropicalismo foram marcados pela ideia de que a arte pode ser uma forma de transformação social, ampliando nossos horizontes e nos levando a questionar o mundo, suas normas e a nós mesmos de maneiras mais profundas e pouco subservientes.
FICHA TÉCNICA
Intérprete: Tuca Andrada
Direção: Tuca Andrada e Maria Paula Costa Rêgo
Direção Musical: Caio Cezar Sitonio
Sonoplastia: Pierre Leite
Músicos: Caio Cezar Sitonio e Pierre Leite
Fotografia: Ashlley Melo
Criação de Luz: Natalie Revorêdo
Operação de Iluminação: João Guilherme
Programação Visual: Humberto Costa
Produção Executiva: Tuca Andrada, Adriana Teles e Ana Tito Menezes
Realização: Iluminata Produções Artísticas Eireli
[1] Disponível em: https://revistarevestres.com.br/algomais/euquefiz/lets-play-that-por-jards-macale/
[2] Disponível em: https://www.folhape.com.br/cultura/tuca-andrada-estreia/261062/.
[3] Agradeço a Tuca Andrada e a Bruno Albertim que, gentilmente, cederam-me essa versão do texto para consulta.
[4] Disponível em: https://revistacontinente.com.br/edicoes/267/comecar-pelo-recomeco