– por Ana Paula Beling –
Crítica de Tragédia, do grupo Quatroloscinco (BH), visto no Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha.
Conheci o Quatroloscinco em 2011. Eu, com apenas 20 anos de idade, ainda estudante universitária, terminava minha graduação em Teatro, na UDESC, em Florianópolis, enquanto trabalhava na produção do II Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí (SC). Fiquei responsável por ser “anja” (uma espécie de monitora/auxiliar/representante-artista da cidade para acompanhar os grupos nacionais que chegavam para se apresentar na programação do festival) de um grupo mineiro sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar. Naquele ano, o grupo apresentou seu primeiro espetáculo, É só uma formalidade, e lembro que fui tão atravessada pela proposta cênica e metateatral da obra que cheguei a escrever e entregar uma carta-depoimento aos artistas sobre quanto me identifiquei enquanto jovem artista, pouco antes de embarcarem. Alguns anos depois, tive a oportunidade de assistir novamente ao grupo no SESC Prainha, em Florianópolis, em Get Out e, também, em Humor. Em 2019, o 4los5 voltou à Itajaí, para a VI edição do Festival Toni Cunha, com Fauna. E, agora, em 2022, retornou pela terceira vez ao mesmo festival com seu mais novo trabalho, Tragédia.
O grupo, que se formou a partir de encontros na UFMG, hoje comemora 15 anos de (r)existência e apresenta seu sétimo espetáculo, que estreou em Belo Horizonte pouco antes do início da pandemia e fez, em Itajaí, em julho, a primeira apresentação fora de Minas Gerais.
Quem conhece o Quatroloscinco sabe que possui um trabalho de muito interesse na palavra e uma força em dramaturgia autoral, com publicações de suas obras pela Editora Javali (coordenada por Assis Benevenuto, um dos integrantes do grupo). Em Tragédia, não é diferente. O texto é de Assis e Marcos Coletta, fazendo uma (re)leitura bastante contemporânea da tragédia grega de Sófocles Antígona.
Tragédia é, também, o primeiro espetáculo do 4los5 com um diretor convidado, Ricardo Alves Jr., cineasta, que provoca o grupo com novas possibilidades cênicas a partir do encontro entre as linguagens do teatro e do cinema. Depois de Fauna, de configuração espacial muito intimista, os atores voltam ao palco italiano com cenografia ampla e recursos tecnológicos de câmera e projeção da imagem que se capta ao vivo.
É em frente a um paredão de engradados que a peça se inicia, quando dois atores (Ítalo Laureano e Assis) dialogam em um idioma difícil de reconhecer. Um canto de beleza e força sonoras, como um lamento, é entoado ao vivo por um terceiro ator (Marcos Coletta), enquanto o paredão se desfaz e se reconfigura espacialmente. E, então, descobrimos novos elementos. Uma mesa de sinuca, sessenta caixas de engradados espalhadas em distintas formações e duas portas de aço, no estilo rollmatic ou rollup (mais conhecidas como portas de correr, sobre as quais ocorrem as cenas de projeção). O cenário, como um ambiente informal de boteco, possui como objeto central, tanto espacial quanto dramaturgicamente, a mesa de sinuca. É sobre e entorno dela que os atores se voltam por quase todo o espetáculo, em jogo metafórico com a política atual brasileira e a disputa de poder. Às portas ao fundo da mesa, uma função tripla: a de tela para projeção; a de cenário visto frontalmente pelo espectador; e a de cenografia para o que se filma por detrás da cena (bastidores) e se projete simultaneamente. Os bastidores, em Tragédia, também se tornam espaços cênicos – porém, de forma cinematográfica.
Uma mesma cena é reproduzida três vezes, em três diferentes línguas: português, italiano e aquele idioma difícil de reconhecer da cena inicial. Que língua é essa que não reconhecemos, quando é tão fácil identificar o italiano? O guarani. Ao som da abertura da ópera de Carlos Gomes, Il Guarany (O Guarani) – popular no país por ser tema do programa de rádio A Voz do Brasil (antes conhecido como A Hora do Brasil), obrigatório desde 1938, como um veículo de divulgação da presidência da república e de programação sob a perspectiva do governo federal –, indago: por que é tão comum aos nossos ouvidos o idioma europeu e tão distante e irreconhecível, para muitos, a nossa língua-mãe?
Qual é a voz do Brasil? Que voz realmente representa nosso país? Quantas foram apagadas, junto de suas memórias?
Tragédia expõe quão frágil é nossa percepção de Brasil, quão pouco ainda conhecemos ou valorizamos o que é nosso e o tanto que identificamos facilmente e apreciamos o que vem de fora (principalmente, se for europeu). Nesse sentido, o mais recente espetáculo do Quatroloscinco propõe questionamentos profundos e urgentes sobre política, ancestralidade, memórias apagadas e necessidade de práticas decoloniais.
Em Tragédia, um jogo de sinuca é tantas outras tragédias, tantos outros jogos de poder, tantas outras violências e injustiças. Um jogo com regras claras, mas nem sempre cumpridas, com gestos e elementos fálicos que compõem um universo político complexo. Não posso deixar de citar, também, a iluminação extremamente precisa de Marina Arthuzzi, Jésus Lataliza e Rodrigo Marçal: quando tudo se apaga e há apenas foco de luz nas caçapas da mesa de sinuca, é possível desvendar quanto se esconde em redes políticas.
Às margens da cena, as caixas de engradados de cor vermelha só voltam a ter destaque e função ao final, com a chegada de alguém muito esperado: a revolta, em forma de Antígona, que diz: “Mas eu vou falar, eu vou falar com minhas palavras sem valor. E continuarei a repetir meu texto que há tantos séculos vem sendo dito em todas as línguas por todas as Antígonas do mundo!”
Onde ela estava?
Onde estará Antígona, para além da tragédia?
Onde está Antígona, senão no fim?
Antígona está na pele de uma mulher preta, que fala e grita sozinha, tentando exaustivamente ser ouvida, enquanto três homens brancos escapam ao fundo escuro bebendo cerveja para apenas contemplar sua denúncia. Antígona vem para desafiar os jogos e poderes instituídos anteriormente, derrubando e lançando ao chão as caixas de engradados. Ocupa a cena de forma muito solitária após jogos fálicos repetidos, ironias e violências típicas do que se entende por masculino, para contestar seu tempo e seu lugar. Onde está Antígona, senão para repetir, cansada, o que tanto já tentou dizer; para resolver o caos que o patriarcado não cansa de causar; para dizer, dizer e dizer sem nunca parecer ser, de fato, ouvida?
Sinto um incômodo, enquanto espectadora-mulher-mãe-madrasta-artista-educadora, em esperar tanto pela presença de Antígona em Tragédia. Quando a mulher, até então vista apenas em rápidas e secundárias cenas de bastidores filmadas e projetadas, finalmente chega e se apodera da cena, com uma interpretação vigorosa e visceral do corpo-voz da atriz Michele Bernardino, tudo já caminha para o fim. Antígona surge após muito tempo de cena em que esses três homens brancos, em seu jogo fálico por disputa de poder, divertem-se, violentam-se, matam-se e encontram-se no mesmo campo da ignorância.
Antígona aparece, após muito tempo vermos apenas os seus pés por detrás das portas de correr do cenário, para escancarar o que se tenta esconder, para gritar o que se tenta calar, para descontruir o que tanto oprime e mata mais dos seus. E não vemos as suas palavras afetarem realmente os outros três personagens. Portanto, está claro o porquê de uma mulher preta falando sozinha, enquanto homens a “espiam” de longe ou apenas a ignoram. O quanto isso expõe de forma crítica – o que realmente acredito ser intenção do grupo e dos artistas envolvidos no espetáculo – e o quanto isso apenas reforça uma realidade exaustiva para tantas mulheres?
Onde pode estar a mulher, a mulher preta, para além da repetição do destino trágico? Onde é possível estar aquela que desafia quem quer que seja para enterrar os corpos dos seus, até que só sobre o seu? Onde está a mulher que não se submete jamais e não cansa de lutar por justiça até o fim dos tempos? Quem é essa mulher? E onde ela realmente se encontra? A mulher, representada por Antígona, está em muitos e diferentes lugares, em vozes e corpos distintos, em vidas e realidades variadas. Todas as vezes lutando, gritando, berrando para que a vejam e a escutem. Quase sempre, interpretada como “louca”, “histérica”, “surtada”. Praticamente sempre, invalidada e deslegitimada.
Então, por que Antígona não pode estar em volta de uma mesa de sinuca, bebendo cerveja, divertindo-se e dialogando de igual para igual, como fazem os três personagens homens da peça? Respondo: porque Antígona não pode jogar este mesmo jogo; porque a ela não interessa mais violência, a disputa ridícula e infantil de poder, seja apontando a arma para o outro, seja metendo sua bola à força em um buraco; porque Antígona não se rende às regras de um jogo sujo, branco, fálico e patriarcal. Está esgotada, cansada, exausta, mas continua lutando para sobreviver, como a maioria de nós, mulheres.
A desordem causada por Antígona, em cena, representada pelas muitas caixas jogadas ao chão, não se compara com a bagunça feita pelos três homens, que representam uma quantidade imensa de outros homens e suas posturas violentas, corruptas e genocidas. Contudo, sendo a mesa de sinuca o símbolo principal do jogo de podres poderes, não seria a derrubada desta uma ação de revolta e transformação mais potente?
São muitos os questionamentos, análises e reflexões após Tragédia. O espetáculo me movimenta enquanto espectadora em diferentes sentidos, e continua reverberando, pois é uma obra que dialoga muito diretamente com o que vivemos. Se Antígona representa a ética da insubmissão e uma luta contra a tirania, Tragédia é um ato de coragem e revolta, pois continuar enfrentando e desafiando o que mata é a única forma de se sentir vivo.
*Vale ressaltar que a personagem Antígona, em Tragédia, é revezada entre as atrizes Rejane Faria (integrante do Quatroloscinco) e Michele Bernardino (atriz convidada do grupo para este trabalho).