Carta-crítica a partir da exposição Período Composto por Subordinação do Coletivo Balalo em cartaz na Galeria Sesc de Artes/ SESC-TO na cidade de Palmas. Imagem de capa da postagem: “Comorbidades” . Foto de Raiane Oliveira.
– por Clóvis Domingos –
Foto: Divulgação SESC-TO
Palmas, 08 de junho de 2022.
Prezado Daniel,
Como estão as coisas? Como está você? Espero que bem.
Já estou aqui em Palmas ministrando a oficina de crítica teatral na Aldeia Jiquitaia do SESC-TO. Estou vivendo dias intensos com muita arte, debates, apresentação de espetáculos e experimentando essa “outra geografia”: ruas largas e planas, espaços bem abertos, o giro das rotatórias para os automóveis, um calor intenso e o céu de um imenso azul quase encostando em minha cabeça.
Também penso a crítica de arte como “outra geografia”: exercício de alteridade, deslocamento da percepção, outra qualidade de tempo (mais lento para a “ruminação” das obras. Lembro aqui do “boitempo” do poeta Carlos Drummond de Andrade), ensaio de sensibilidade, busca por nomeações para as impressões vividas, o vazar de furos e feridas produzidos pelas obras junto a nossa pele, o “punctum” de que nos fala Roland Barthes, aquilo que salta, deixa marcas e desassossegos. São poéticas da pregnância.
Todas as tardes quando chego à sede do SESC-TO o primeiro lugar que visito é uma galeria de arte com a exposição Período Composto por Subordinação do Coletivo Balalo formado pelos artistas Cláudio Montanari e Léo Perotto. Criei esse estranho ritual e não consigo explicar porque meu corpo e desejo ficam capturados e impactados por essa exposição. Algo me atrai, nutre, inquieta e chama. Ainda não assisti em nenhum lugar algum trabalho cênico que tenha se debruçado sobre o tema e os efeitos da pandemia da Covid-19. O retorno das apresentações teatrais e de algumas produções parece (eu não tenho muita certeza) ter se desvencilhado de fazer contato com algo tão difícil e avassalador como o que vivemos e que causou tantas perdas e milhares de mortes. É como se nada tivesse acontecido. “Vamos retomar o normal”! Qual normal? Esse hiato me incomoda…
Voltando à exposição, quando adentro ao seu espaço, sinto uma espécie de angústia e ao mesmo tempo um respiro de alívio. Parece que nesse lugar encontro um refúgio para elaborar meus lutos pessoais e chorar meus mortos os quais não pude me despedir. Sim, a pandemia foi um período composto por subordinação (isolamento físico, distanciamento social, escolas e teatros fechados, confinamento doméstico para quem teve esse privilégio) e humilhação (nossa arrogância “caiu por terra” diante da ameaça provocada por um vírus invisível e letal). Também penso que vivemos um período composto por medo e indignação. O projeto necropolítico dos governos e a ganância dos ricos e poderosos resultou em mais miséria, fome e violência para muitas populações em várias partes do mundo.
“Pandemia”. Foto: Raiane Oliveira
Na referida exposição do SESC-TO temos ao centro a “oração principal” representada na instalação artística “Pandemia” e as “orações subordinadas” estão ao lado e são materializadas pelas séries “Encerrado” e “Comorbidades”. Em formato de uma cruz feita com folhas secas no chão e na parte alta com a fixação de placas com escritos e informações sobre o perigo de contágio da Covid-19, a instalação “Pandemia” reflete muito do que vivemos: um cotidiano de mortes e as campanhas de prevenção e cuidado para se evitar a contaminação. Corpos sob a terra e discursos pairando sobre nossas cabeças. Um cotidiano inundado de pavor e desalento. Palavras de ordem às vezes necessárias, às vezes confusas, mas cujo direcionamento era recebido de forma desigual. Excesso de informação e pobreza de fabulação. Nosso vocabulário reduzido ao real do corpo, da ciência e da medicina. Uma luta pela sobrevida. “Um pouco de ar(te), por favor”!
Encerrado (série criada por Cláudio Montanari) parece “fotografar” aquilo que rodeava o artista. As serigrafias feitas com pigmento de terra trazem o tom sépia e uma dimensão de deserto e da beleza da fauna do cerrado para um corpo encerrado, isto é, restrito à casa. Vestígios de um tempo paralisado, às vezes árido e nos revelando a secura, a natureza movediça das coisas, nossa fugacidade. Somos poeira.
Já em “Comorbidades” o artista Léo Perotto mistura desenho, pintura acrílica e colagem. Os materiais estão sobrepostos e pedem que nosso olhar vasculhe as nuances das paisagens ali expostas. Carvão, tinta e papelão juntos produzem cargas de leituras inusitadas desvelando nossas confusões internas e coletivas. A vida na sobrecarga. Ali se encontram a transitoriedade (pelo risco do carvão) e a necessidade de duração e registro de vida (pelos elementos tinta e caixa de remédio). Há um traço de art pop e a técnica da colagem me remete ao desejo de se fixar algo, juntar os pedaços, organizar os restos. O colorido das gravuras parece ter sido inspirado pela vivacidade alegre do artista russo Kazimir Malevich com suas formas geométricas e abstratas. Talvez por isso meus olhos não se cansam de passear por aquelas superfícies eróticas e quase infantis. Ciclos de vida: morte e renascimento. Sabe, meu amigo, a gente precisa de um pouco de futuro!
“Comorbidades”. Foto: Raiane Oliveira
A exposição Período Composto por Subordinação do Coletivo Balalo pode ser considerada como um memorial dos mortos e uma convocação aos vivos. Uma encenação da dor humana coletiva. Um documento de nosso tempo. Nós, os sobreviventes, precisamos contar essa história. Todos nós fomos afetados por essa tragédia.
Prometi que ia te escrever comentando sobre os trabalhos teatrais vistos e estou aqui compartilhando uma experiência de assombro com uma obra de artes visuais. Mas viajar é isso: um encontro com o inesperado, uma aventura existencial, um susto.
Fiquei pensando outra coisa: não seria o ato de criar esteticamente uma forma de morbidez e doença? E será a crítica uma comorbidade? Sinceramente, não sei. Não quero ser curado de ambas as atividades. O filósofo Tzvetan Todorov afirmava que: “a crítica não é um apêndice superficial da arte, mas seu duplo necessário”. O artista e o crítico quando criam experimentam um período composto por subordinação e transgressão. Estamos subordinados pelas ideias, devaneios, técnicas, materialidades, prazos, forças ocultas e projetos conscientes. Aceitar essas limitações é um gesto de liberdade. Ultrapassar essas limitações é um gesto de transgressão. Criamos com os (im)possíveis. Adoecemos e produzimos saúde ao mesmo tempo. Tocamos em nossa humanidade. Daí: a humildade. Somos húmus, terra.
A exposição Período Composto por Subordinação se configura como um trabalho necessário, urgente, histórico e político que em sua composição nos confronta com nossa decomposição e fragilidade. São gramáticas da vulnerabilidade. A possibilidade de fazer um giro poético pela linguagem, isto é, transformar expressões como “pandemia, comorbidade e encerrado” em cor, forma, textura e movimento. Assim “encerrado” é agora: “em ser ATO” e “comorbidade” se transforma em “cor, com amor, orbitar-te”. Como encantar novamente as palavras, deslizar seus significantes, torcê-los e reinventá-los?
A presença das pessoas no espaço expositivo é o sopro revigorante, um infl(AR) outros mundos e realidades, uma dança na qual o corpo celebra a vida. A arte nos lembra de nossa precariedade constitutiva e nossa interdependência humana. Ao mesmo tempo somos feitos de transbordamentos. Criar é um gesto de resistência. Re-existência. Re-insistência.
Esses dias li um poema da mineira Ana Martins Marques que dizia assim:
“ Estava a morte por perto
e por isso a vida
armou sua vingança:
aumentando-nos a fome
a vontade de cerveja
e condimentos
o desejo de gastar o dia ao sol”.
Enfim, Período Composto por Subordinação é uma exposição luminosa e com forte vocação reparadora. Em meio às ruínas e, com elas, Daniel, insistir em criar é ofender a morte. Uma vingança em forma de vida.
Um abraço,
Clóvis.