Crítica a partir do filme A dança do Lindô, produzido pela NINHO CULTURAL e AGULHA CENAS e apresentado na programação da Mostra Aldeia Jiquitaia do SESC-TO em junho de 2022 na cidade de Palmas.
Agradeço aos participantes da oficina Paisagens críticas para a cena teatral realizada no SESC-TO pela colaboração na versão final desse ensaio.
– por Clóvis Domingos –
para este país
eu traria
os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho certeza: existo.
para este país
eu traria
meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas
para este país
eu traria
meu corpo
para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas
não me permitiriam malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar
aquele navio poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país
eu trouxe
a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua
para este país
eu trouxe
meus orixás
sobre a minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes
para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais
: ninguém notou,
mas minha bagagem pesa tanto
(“para este país” de Lubi Prates).
Imagem: site Ninho Cultural
“Cantar-dançar-batucar” – essa é a expressão que o pesquisador Zeca Ligiéro utiliza para se referir às manifestações cênicas negras. Nas cosmologias afro-brasileiras o corpo é vivido como território sagrado, detentor e protetor de saberes, forças e gingas que, em contextos coloniais de luta social e reparação histórica, encontra nas danças uma forma de resistência para manter vivas suas memórias e tradições. São performances de um tempo espiralar como nos lembra Leda Martins, isto é, num mesmo rodopio, o passado, o presente e o futuro con-versam (“versar com”: no sentido de pura musicalidade) e levantam a poeira do chão.
O filme A dança do Lindô produzido pela NINHO CULTURAL e AGULHA CENAS (Palmas- TO) registra em 18 minutos uma expressão tradicional da Comunidade Quilombola de Cocalinho. Um documentário que mescla depoimentos e momentos dessa dança comunitária que surgiu há mais de 50 anos no Maranhão e que ocorre na Semana Santa (mais precisamente na noite de passagem da “Sexta da Paixão” para o “Sábado de Aleluia”). Importante destacar que essa “brincadeira” de alguma forma subverte a ideologia cristã marcada nesse período pela dor e martírio com a crucificação e morte de Jesus sendo vivida como tempo de dor e culpa, e que na referida dança, se transforma em alegres narrativas do cotidiano, canções e poemas de trabalho e orações corporificadas. Isso é confirmado pela fala de uma senhora ao dizer: “quando o tambor toca, ele toca nossa alma”.
Se a relevância masculina no sapateado é reconhecida nas falas dos participantes entrevistados (os pés batem forte o ritmo no chão e são uma espécie de tambores); por outro lado, são as vozes femininas que são as “pretagonistas” relatando histórias, resgatando fatos e nomes, assumindo lugares de fala na qual a palavra é matéria ancestral e conecta tradição e modernidade. Essas iabás (leio as matriarcas da comunidade como encarnações das orixás femininas) são focalizadas e escutadas tendo atrás de si uma árvore frondosa, remetendo assim a força das raízes de tempos outros, a consistência do tronco-pau que não se quebra e o balançar dos galhos e folhas verdes que nessa dança também se movimentam.
Imagem: site Ninho Cultural
Há uma delicada coreografia da câmera que ora aproxima e ora se afasta desse bailado porque parece reconhecer que ali habita o sagrado, pois nem tudo se revela, há um véu de mistério protegendo esse ritual o qual nenhuma imagem tecnológica consegue captar senão pela experiência viva do corpo em ato, êxtase e comunhão.
O filme sugere ter uma função e destinação pedagógicas, isto é, apresentar e nos aproximar da referida dança. Isso através de um roteiro marcado pela união da oralidade e a coralidade dos corpos, por uma edição precisa e equilibrada e pela produção dos materiais selecionados com alta qualidade, o que muito colabora para gerar uma significativa adesão e recepção por parte de quem assiste. Fui atravessado por essa dança circular que até então não conhecia e com ela posso aprender que o trauma da escravidão não teve a capacidade de silenciar essas culturas ancestrais e pode ser cicatrizado (jamais esquecido) pela alegria da festa e celebração. E mais: essas danças tecem uma significativa ponte entre os mais velhos e os jovens da comunidade num movimento de frutífera renovação.
Para finalizar: ouvir os depoimentos dos integrantes da NINHO CULTURAL (antes da exibição do filme houve uma conversa da artista e professora Liu Moreira com Vone Petson, curador do SESC-TO) contando sobre os projetos que a associação vem criando com o objetivo de investir e divulgar as produções de artistas e grupos do Tocantins através da chamada economia criativa, nos mostrou a importância de ações e organizações coletivas em prol da manutenção e emancipação de populações cujo o patrimônio cultural precisa ser reconhecido e valorizado.
A dança do Lindô é um importante material de registro e pesquisa tanto para a comunidade de Cocalinho quanto para todas e todos estudiosas e estudiosos de cultura e arte brasileira (confirma o legado e herança que os povos negros nos ofertaram) e quiçá para todos os cidadãos de nosso país.
(Segue o link para assistir aos trabalhos da Mostra Ritual: https://ninhocultural.com.br/mostradoritual#1).
Ficha técnica:
Produção e Realização: NINHO CULTURAL e AGULHA CENAS
Produtora Executiva: RENATA DOS SANTOS SOUZA
Produtora Artística: LIU MOREIRA
Diretor técnico e Desenho de Som: DIEGO BRITTO
Técnico de som direto: DIEGO BRITTO
Fotógrafo: EMERSON SILVA
Captação e Edição de Imagens: LOOKUP FILMS
Intérprete de Libras: CAMILA PINHEIRO e DAIZ CAMPELO
Curadoria: MEIRE MARIA MONTEIRO e ELTON FIALHO
Criação e Manutenção de Landpage: OSMAR SIQUEIRA
Design digital: FLAVIANA OLIVEIRA XAVIER – ESTÚDIO OX
Assessoria de Imprensa: CINTHIA ABREU