Uma fabulação crítica a partir do show de forró da Banda Arco de Lírio apresentado no dia 12 de março na programação do Corredor Cultural do Edifício Central em Belo Horizonte/MG. Imagem de capa: Alexandre Studio Foto.
– por Clóvis Domingos –
Imagem: Alexandre Studio Foto
Recuperar a alegria em meio a tanta tristeza, morte e caos.
Retirar o corpo de um certo estado de torpor e anestesia.
Refrescar a existência ferida por tantas brasas desse Brasil que insiste em queimar nossos sonhos e esperanças.
Reativar os movimentos e pequenas coreografias pelos espaços da cidade.
Afirmar a vida.O que ainda nos mobiliza, espanta e enfeitiça?
Conversando com o crítico Juliano Gomes sobre arte, cena contemporânea, vida pandêmica, as esdrúxulas performances da nossa direita fascista e uma perplexidade de não saber mais sobre o que se escrever, suas provocações me chegam na forma de um relâmpago, raios que cortam e abrem frestas e luminosidades: como desprogramar, se perder, embaralhar os horizontes, se arriscar? Como erotizar a prática da crítica, abraçar o desconhecido, se assumir vulnerável através da nudez e precariedade dos conceitos viciados e teorias desgastadas, se abrindo assim para um encontro que possa desvelar o que ainda não existe, o que pede uma aventura ou um gesto inusitado?
O corpo é uma bússola.
Onde teu corpo acontece e entontece?
Por onde meus passos têm me destinado?
Então nesse texto gostaria de compartilhar uma experiência de festa. Aqui bailam juntas as dimensões estética, política e ética. Uma vivência comunitária e contaminada. Uma possibilidade de aglomeração inventiva num momento de flexibilização no que se refere às medidas sanitárias da covid-19.
Corpos em (des)acordo acordam sensações e sensibilidades. Confusão e separação: operações presentes num evento festivo.
O show de forró da Banda Arco de Lírio na feira independente do Corredor Cultural (evento organizado pelo Ricardo Avelar da Casa Angola no Edifício Central da Praça da Estação) acendeu em mim uma vontade de escrita, um “baião de dois”: música e texto.
Nesse forró de Rabeca, apresentado por Reebs Carneiro, trazendo os ritmos nordestinos acompanhados pelo zabumba de Pedro Campolina e o pandeiro e triângulo de Ricardo Campos, um corpo coletivo foi gerado. Uma invocação brincante, uma vibração sonoro-espacial como um teatro de contágio (sem atores e espectadores), uma peste sem necessidade de vacina. No calor da dança se misturaram percussão, rabeca, versos de cordel, narrativas de amor e dor, a sensualidade presente nos suores das pessoas que gingavam nesse encontro perfeito da atmosfera rural dos bailes com os elementos urbanos, criando assim um mafuá, uma muvuca colorida e dispersa.
O corpo sabe
Foto de Dani Vieira
“Pode entrar, sair e retornar”.
Impressiona como cabia tanta gente diferente naquela celebração. Lembro aqui do escritor e poeta Luiz Antonio Simas: “a festa é espaço de construção de protagonismo das cidadanias negadas”. Todos misturados, escutávamos um pouco sobre a história da rabeca, sua chegada ao Brasil, a influência da cultura árabe e o repertório da Banda Arco de Lírio perpassava de forma harmoniosa e contagiante pelos clássicos do forró, baião, xote, côco e todo tipo de rastapé. E todo mundo cantava, dançava, bebia, comia, rodava, girava, aplaudia, se sentia parte daquela comunhão festiva.
A pluralidade e riqueza de ritmos não nos permitia momentos de repouso. O arco sonoro se abria do mais efusivo rumo ao introspectivo. Havia ali o deboche, a leveza e também o dramático. Momentos de improviso e jogo. O humor e a dor. Ardor. O refinado, o simples e o disforme. O dançar juntinho e separado. A quebra das sequências nas melodias soprando a novidade na tradição. Os mestres populares eram homenageados e realmente podíamos afirmar com Oswald de Andrade: “a alegria é a prova dos nove”.
A teatralidade da festa limpando nossas retinas tão cansadas das telas e das paredes da casa, renovando nosso olhar, expondo nossas presenças ao perigo. Como num rito sagrado e profano, momento único de experimentar o excessivo, o orgástico, o sacrificial, o descontrole, ser consumido não mais pelo mercado, mas ser marcado pelo turbilhão que acontece numa reunião exaltada e excitada. Produção de um outro mundo.
A festa também é triste?
Lamento Sertanejo (de Gilberto Gil e Dominguinhos) e Assum Preto (Luiz Gonzaga) foram algumas das canções que fizeram a rabeca chorar e com ela nos emocionamos juntos. Uma memória arcaica foi ali ativada: as histórias de vida de um povo obrigado a migrar, as saudades da família, o cotidiano duro no concreto da cidade no qual as relações humanas se encontram muitas vezes minguadas e empobrecidas. Fica muito forte essa ideia de “interior”, desenraizamento, exílio, perda de energia libidinal, o corpo condenado ao trabalho e às leis de sobrevivência econômica.
A gente anda vivendo assim igual ao assum preto: “Num vendo a luz, ai, mas canta de dor”. E também canta de alegria, insiste nela e com ela. O cancioneiro popular escolhido pelos músicos da Arco de Lírio nos lembra que precisamos resistir a tudo isso que nos asfixia e rouba nossas forças.
E aí lá vinha mais aconchego, perfume de flor de lírio, fuga dessa opressão e poesia:
“ Todo tempo quanto houver pra mim é pouco
Pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco
Enquanto o fole tá fungando tá gemendo
Vou dançando e vou dizendo meu sofrer pra ela só
E ninguém nota que eu estou lhe conversando
E nosso amor vai aumentando
Pra que coisa mais melhor? ”
A gente escuta uma música assim e descobre que nosso corpo é um arco-delírio: vibra, dobra, enlouquece, sonha, mira, escapa, sente “a falta de um bem e de um xodó”, quer o estar-junto e serpenteia através da força das canções populares e tradicionais. O som que cura é remédio e reboco capaz de revestir nossas carcaças muitas vezes cansadas e sequestradas por um tempo sem sentido, sem prazer e alegria.
Aqui o reboco é preencher com música o que está morto e oco.
Assim nosso corpo é como um arco de lira.
As músicas tradicionais brasileiras narram nossas raízes e a memória do país.
Várias pessoas chegavam atraídas pela reverberação da música que ressoava no coração aberto da cidade e um fato nos chamou a atenção: quando a baqueta do zabumba quebrou, eis que milagrosamente, um homem que ali a tudo assistia, de imediato ofertou a sua e o baile não foi interrompido. Como gratidão e respeito, os músicos da Banda Arco de Lírio o convidaram a se apresentar junto e assim ouvíamos e conhecíamos um pouco da arte de Felipe Puxirum, um artista do Maranhão atualmente em terras mineiras. Corpo forasteiro é corpo festeiro. Rapidamente acontecia sua integração ao som do grupo, sem preparação ou ensaio, era possível perceber sua capacidade de escuta, sua generosidade e como sua batida firme em hora nenhuma disputava com a rabeca de Reebs Carneiro. Ele teve depois seu momento de protagonista: nos apresentou suas pérolas e preciosidades musicais. Mais tarde, numa conversa informal, ao recuperar o episódio da baqueta, ele nos dizia: “o mais importante é resguardar e reverenciar nossa música”.
O show da Banda Arco de Lírio com suas diferentes sonoridades, espacialidades e arranjos a nós confirmava a potência disruptiva dos corpos, a gratuidade e beleza dos encontros, a dádiva da festa na qual nada disputava ou exercitava poder, onde tudo podia acontecer na simultaneidade, no jogo dos passos tecendo espaços, no ritmo dos compassos nos provocando espasmos (só para registrar aqui que: “a ema gemeu no tronco do jurema”). Acometimentos e acontecimentos na pele. Uma “gaia ciência” experimentada na carne. Uma aprendizagem. Um desejo de amor, “um pouquinho de saúde e um descanso na loucura” como nos ensina Guimarães Rosa.
Que bom ter a possibilidade e liberdade de publicar aqui no site do HC um texto sobre outras formas de manifestação e paisagem artísticas. Um show de forró tem tanto a con(versar) com um espetáculo teatral. O teatro não nasceu nas feiras livres e nas ruas? Não era um direito de todos? O teatro em seus primórdios não era canto e dança coletiva? Talvez esticar esse arco e tensionar essas cordas possa ajudar a produzir outros delírios, retornar a alguns princípios que se perderam ou até mesmo apontar trilhas futuras para imaginar cenas impensadas.
Do sincopado ao sim: “CORPADO”
Foto de Dani Vieira: em cena, Felipe Puxirum e Grupo Arco de Lírio
O show de forró de Rabeca da Banda Arco de Lírio foi como uma roda de capoeira, um bloco de carnaval, uma brincadeira de rua, uma gira de caboclo, uma assembleia pública, uma partida de futebol no campinho de terra suja, uma batalha de rap em alguma “quebrada”. Entre sincopadas conhecidas e outras pouco usuais, uma convocação performativa e “arretada”, nos permitiu experimentar um refazimento existencial, uma reconexão com nossa herança farrista e brejeira, uma renovada aposta no encantamento, numa possibilidade de:
sair de lambuja
do limbo:
pela lambada,
pela lambida
pela languidez
e o regozijo…
A vida também pode ser um baile perfumado.
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