– por Marcos Antônio Alexandre (FALE-UFMG/CNPq) –
O universo da crítica foi se tornando cada vez mais presente em meus estudos, tomando proporções dinâmicas e múltiplas em minha formação intelectual como sujeito, estudante, docente, professor-pesquisador e atuante – ator-espectador/ expect-ator/ leitor / consumidor de arte. O exercício da linguagem crítica tem assumido vertentes distintas em minha trajetória profissional. O ato da escrita crítica e o exercício de análise de cunho intuitivo, comparativo e teórico se encontram em mim e em mim se perdem e se reencontram nas reminiscências de minhas memórias fugazes. Por isso, o termo movência tem se transformado em um mote contínuo que vem alavancando meus escritos e conduzindo meus interesses pessoais e profissionais em relação aos estudos da crítica teatral.
Direcionar o olhar sobre um trabalho artístico é sempre algo desafiador. Se nas obras de artes, num quadro ou numa foto, há um punctum (Barthes, em seu icônico A câmara clara) que nos atravessa e que, por sua vez, move as nossas subjetividades como leitores do mundo, no teatro, na dança, na performance, não deixa de ser diferente. Somos impactados por imagens que nos aproximam e nos distanciam, nos trazem sentimentos múltiplos – muitas vezes contraditórios, dicotômicos e, até, desconexos –, alegria, tristeza, euforia, medo, desejo, repulsa, regozijo, melancolia, paixão, horror, piedade e gozo, como já nos ensinaram os poetas a partir de suas tragédias clássicas. Quanto mais uma obra me atravessa, mais eu me vejo focado, interessado e provocado a responder, de formas distintas, estendendo o meu tempo de fruição com o trabalho confrontado[1], conversando com amigos ao sair dos espaços de apresentação, levando as reverberações que as propostas artísticas me causam para outros espaços – salas de aula, meus textos reflexivos em forma de artigos e ensaios críticos, lives, podcasts; o “contemporâneo” desse “hoje”, momento em que nossa vida continua sendo atravessada, influenciada e mediada pelos dispositivos digitais. Enfim, busco alguma forma de me manter desafiado, de fazer com que os trabalhos continuem vivos em meu tempo de presença.
O teatro, assim como a literatura, está em mim. As tessituras e poéticas literárias, nos últimos anos, as poéticas pretas como eu tenho preferido nomear e que têm me movido intelectualmente. Ver – ler para além dos olhos, sentir, vivenciar – o teatro faz parte de minha corporeidade e gosto muito mais quando aciona o meu corpo preto. Tenho ciência da presença das artes cênicas na minha vida. É neste espaço em que eu me sinto confrontado comigo e com o Outro, com formas alternas de confrontar lugares onde o meu corpo, minhas fabulações, muitas vezes, não conseguem habitar – visto que não tenho mais estado em cena como ator –, mas as personagens me permitem seguir em estado de movência e reflexão; e a crítica, por sua vez, é o lugar de abrir as arestas, de fomentar os conflitos, de catucar as feridas. Interessa-me refletir sobre o teatro contemporâneo e suas vertentes em que o político é dinamitado em múltiplas linguagens. A crítica teatral nem sempre dá conta de acompanhar todas as nuanças dos textos espetaculares que têm sido produzidos na nossa contemporaneidade. O Horizonte da Cena tenta estar atento para, a partir dos olhares divergentes de seus críticos, documentar as singularidades da cena contemporânea.
Toda essa digressão para me referir à minha chegada ao Horizonte, que se deu a partir de um convite de uma de suas idealizadoras, Luciana Romagnolli, em 2015. Naquele instante, a convocação me alegrou muito. Lembro-me, como se fosse hoje, que, além de agradecer pela oportunidade, eu lhe disse que não sabia se poderia me comprometer com uma participação efetiva por causa de falta de tempo e da disciplina que o exercício da crítica nos exige: ainda que a crítica teatral já estivesse integrada ao meu perfil de pesquisador desde meus trabalhos de mestrado (1998) e doutorado (2004). Durante o período de escrita de minha dissertação, intitulada A diferença entre o texto dramático e o texto espetacular em seis obras apresentadas em Belo Horizonte entre os anos de 1994 e 1998[2], li centenas de dramaturgias, assisti a mais de cem espetáculos realizados em palco, rua e espaços alternativos e, ao final, como resultado apresentado na dissertação, realizei uma leitura analítica específica das peças A Serpente, O Beijo no Asfalto, O Casamento (de Nelson Rodrigues), El Coronel no tiene quien le escriba (de Gabriel Garcia Márquez), Rua da Amargura (do Grupo Galpão) e El Continente Negro (de Marco Antonio de la Parra), trabalhos que naquele contexto me marcaram sobremaneira em lugares mnemônicos distintos.
Não obstante, em 2015, reitero que não me via circunscrito ao exercício cotidiano da crítica teatral. Portanto, naquele momento, comentei com a Lu que minha contribuição seria esporádica e que só escreveria sobre os trabalhos que eu gostasse e com os quais eu tivesse alguma afinidade ou identificação. Interessante perceber que ainda hoje essas são as características que têm suleado o meu olhar crítico, e com o tempo fui matizando a minha mirada analítica, pigmentando-a com mais melanina, escurecendo minha escrita para dar visibilização e amplificar os lugares de alcance das poéticas pretas; claro, sem deixar de dirigir meu olhar para outros trabalhos com os quais continuo me identificando.
São os sentimentos/noções epistemológicas de encruzilhada (falando com Leda Martins). escrevivência (em diálogo com Conceição Evaristo) e movência que me inquietam e levam a direcionamentos perscrutadores que convocam minhas afetividades, identidades e subjetividades para ler os corpos e corpas em performance na arte. Interessam-me os trabalhos em que, como espectador, me dou conta de que a plateia se sente afetada de alguma maneira, em que as pessoas se veem “representadas” ainda que em ações específicas. Os trabalhos contemporâneos que me interessam sem dúvida são aqueles cruzados esteticamente por uma miríade de pautas moventes, propostas espetaculares em que os coletivos e/ou atores e atrizes envolvidos se desafiam, têm seus corpos e corpas travestidos e atravessados pelas suas proposições; meu olhar pulsa quando meu corpo também pulsa com o que está sendo descortinado diante de meus olhos.
Como não poderia ser diferente, não consigo deixar de mencionar, hoje, neste momento de minha escrita, três experiências cênicas recentes que vivenciei intensamente, a saber: Ficções sônicas 02, visto virtualmente pelo Canal do YouTube Brasil Cena Aberta; Exília, visto presencialmente no Galpão Cine Horto no dia 19 de novembro na mostra “Reencontro”, e Sapato Bicolor, revisto também no mesmo espaço, no dia 21. Três trabalhos que mexeram muito comigo, me descentraram e fizeram com que minhas movências fossem acionadas em lugares bem específicos.
É fato posto e mais que discutido que a pandemia nos distanciou das salas de teatro e com isso fomos lançados dentro do universo digital e tivemos que aprender a lidar com seus recursos e linguagens. Neste cenário, eu me vi imerso a novos espaços virtuais e a sala e outras dependências de minha casa se tornaram meus espaços de apresentação solitários. Quase dois anos assistindo a espetáculos de diversas ordens e temas. Alguns me moveram intensamente e outros nem tanto; alguns esteticamente maravilhosos, mas não me atraíram tanto; outros sem maiores comprometimentos com a questão estética, mas com uma textualidade incrível. Hoje, de certa forma, já estamos saturados do universo virtual. No entanto, considero-me uma pessoa resiliente e sigo fazendo – ou o tentando – da tela o meu/nosso espaço de presença: esse tem sido meu exercício e proposições constantes ao assistir a cada novo ou velho e repetido trabalho.
A peça-experimento Ficções sônicas 02 é desdobramento de um projeto que Grace Passô tem desenvolvido desde o ano passado e que gerou como proposições performativas dois trabalhos extremamente potentes: Ficção sônica 0, uma peça radiofônica criada a convite do Festival de Arte Sonora Novas Frequências, e Para acabar com Juízo de Deus, uma instalação sonora, produzida especialmente para a 34ª Bienal de São Paulo e inspirada num programa radiofônico homônimo realizado por Antonin Artaud (1896-1948), em 1947.
Ficções Sônicas 02 foi filmada no Theatro Municipal de SP e reuniu artistas que atuam em linguagens artísticas diversificadas: o músico Barulhista, o soprano Marly Montoni, a bailarina de danças urbanas Silvia Kamyla, o ator e artista multimídia Lucas Andrade e o músico, performer Novíssimo Edgar, completando o time com a participação do percussionista Mauricio Badé e do Coral Paulistano, sob a regência de Maíra Ferreira. Um encontro de vozes múltiplas regido pela concepção dramatúrgica, performativa e espetacular de Grace Passô. O trabalho me move em – e me leva para – muitos lugares, me descentraliza, fazendo-me recuperar vestígios de memórias de Por Elise, espetáculo a partir do qual discursos do cachorro continuam pulsando em mim – “Cuidado com o que você planta no mundo!” –, presentificado na imagem da cadela Amélia adentrando o espaço do Theatro Municipal e subindo ao palco – “falando e movendo aqui pra quem? Igual seus latidos, mas pra quem você late cão? Pra ninguém… e pra quem eu falo cão? Eu também não sei…” –; de Amores Surdos, com o seu hipopótamo que fantasmagoricamente ressurge ocupando todo o espaço de minha casa-tela, “Têm coisas que foram feitas para se viver com ela” – será?; de Vaga Carne, com seus brados de vozes polifônicas da mulher preta que, por sua vez, me fazem acessar minha corporeidade preta. Acionam meus encontros e incursões nas oralituras de Leda Martins e nas escrevivências de Conceição Evaristo, me levando mais uma vez a pulsar com suas “Vozes Mulheres”[3]: como fazer renascer em nós aqueles e aquelas que nos antecederam, como manter os nossos mais velhos e suas vozes ecoando em nossos corpos e corpas pretes. Onde as sonoridades da Ficções se encontram com as sonoridades que nos constituem como sujeitos e sujeitas: “Representatividade saindo por 4542 francos… o patrão ligou louco”; “feminismo universal por apenas 23 euros, é pegar ou largar”; “periferia colorida por 1500 kilos…”; “entre mim e você existe um abismo, mas entre os humanos também… me chamam preto e acham que já sabem quem eu sou um abismo…”; “não sabem que se eu pixelar o preto que eu sou eu inauguro novas formas no mundo, outras, outros olhares…”; “meu preto não quer nome para o meu preto som, ninguém me decifra… esse é o nosso feitiço…”
Imagens telúricas, imagens que me descentram, corpo pulsante em movimento, exúnico, corpo-griot que movimenta em prol de inaugurar outras histórias, ocupar outros espaços, sim, meu corpo e outras corpas podem ocupar o palco do Theatro Municipal; meu corpo e outras corpas ocupam os espaços externos do Theatro Municipal… quem está dentro e quem está fora… Ficções cênicas 02 me (nos) causa vertigens, é fragmentação, é experimentação e linguagem que buscam conversar para além da tela… o ser crítico que existe em mim não consegue se eximir de ser afetado.
Com Exília, de Juliana Pautilla, eu volto ao tempo da presença. Retorno ao Galpão Cine Horto em sua mostra “Reencontro” para ver a potencialidade de uma mulher-personagem-atriz-persona com seu novo trabalho. Uma entrega pessoal e sensorial ao mundo feminino, feminista, desvestido de purismos, um texto autoral forte, que nos prende desde o início:
Estou feliz que estejamos aqui. Exília é um trabalho processual que venho realizando em pedaços, através de encontros comigo mesma, encarando minha subjetividades. Esse texto que estou lendo agora muda a cada apresentação. Às vezes acho que falo algo novo. Mas percebo que não é novo. É apenas um sentido entrecruzado de tempo, que me faz retornar ao início, onde tudp1o começou. Por qual ponto começar a falar da repetição? Como foi para um ser nomeado mulher ir ao confessionário no século XVI e se tornar a bruxa assassinada na fogueira? Como foi para uma indígena ter sua nudez nomeada de vergonha? Como foi o momento em que Marielle entendeu a emboscada e percebeu que ia ser silenciada? Nada disso podemos dizer que foi. Isso tudo ainda é. Por isso tento relembrar violências e aí talvez eu possa entender o que é ser filha de uma nação de estupradas. (PAUTILLA, 2021)
A experiência ao assistir a Exília e minha imersão no trabalho me leva a uma reflexão pessoal sobre as masculinidades tóxicas que nos constituem com sujeitos cisgêneros. A personagem-persona-atriz me obriga a exercitar a escuta, palavra tão utilizada e tão pouco praticada. Na proposição dramatúrgica, Juliana divide sua poética textual em “Imaginação”, cenas propositivas que nos movem para além do campo do onírico, do dispositivo do vídeo à sua integração à cena e à dinamicidade da atriz no palco em tempo de presença, e sua entrega com ela e para o público. Exília também é uma proposta cênica que explora o sensorial, que busca a cumplicidade com a plateia, principalmente com o público feminino que se faz presente com ela. O meu exercício de criticidade é de aguçar a minha escuta, de tentar identificar os discursos polifônicos que a “mulher autofalante” utiliza para implodir o espaço e as nossas sensações:
Não sou mais uma ilha… estamos cercadas. É sobreviver. É sobre viver. É sobre mim, sobre você. É sobre ela, sobre elas. É sobre bruxa, sobre coxa, sobre salto. É sobre exposição. Sobre sair, sobre ir. […] É sobre estimar. É sobre a mesa, é sobremesa, sobrenome, sobrepeso, sobre porto, sobrenatural. É sobretudo.
É sobra. É silêncio. É sussurro.
Pautilla conclama a textualidade de Ana Luísa Campos para falar consigo e com elas eu sinto que não é só para mim, mas não deixa de ser para e sobre mim, é sobre nós. O ato crítico que não deixa de pulsar é o da ESCUTA. E como uma confraria de vozes mulheres, eu recupero a poética também implosiva de Nívea Sabino: “ Ei, macho alfa!/ – sofre não! Sofre não…!// Nenhuma mulher mais/ independentemente da cor/ ficará calada/ enquanto houver outras violentadas/ Violeta é a cor/ que marca a luta/ de resistência ao roxo/ que ocê deixou”. (SABINO, 2016)
Sapato Bicolor, de Fabiano Persi, é o outro espetáculo visto na mostra “Reencontro” que me fez (faz) pulsar em vários lugares. O trabalho já foi objeto de meu olhar analítico em outro texto para o Horizonte, mas revê-lo, agora, quando volto a estar em meio ao público em um teatro que alimenta as minhas memórias afetivas como o Galpão Cine Horto e sentindo minhas energias sendo trocadas com a plateia (não consigo dispensar a frase clichê), não tem preço. Não me interessa aqui revisitar o que já escrevi, mas sim experimentar em palavras o que voltei a sentir.
É muito impactante ver a performance de Fabiano Persi, que nos contagia desde a fila que se forma antes de adentrar o espaço. Como não se identificar com o jogo de palavras lançadas ao vento – até que ponto são de fato “lançadas” ao vento – pela personagem do engraxate? Em princípio, seria mais uma “representação” de uma personagem que atravessa as nossas subjetividades, rompendo com a transitoriedade da via urbes. Logo, nos damos conta de que suas palavras vão muito além do “Vai um graxa aí dotô!” Sapato bicolor é o “pisante” que brilha, mas, acima de tudo, é a movência que está por detrás do objeto de desejo do dançarino negro que o ostenta nos bailes soul. O calçado é expressão de uma tradição cultural das comunidades pretas periféricas. Minha corporeidade preta viaja no tempo e com a personagem rememora os passinhos sendo conduzido para o universo musical de Michael Jackson, MC Hammer, James Brown, Tony Tornado, Donna Summer, entre tantos outros nomes que fizeram do rock, blues, soul, reggae, samba-reggae ao break dance, funk melody, rap, os “bailes de favelas” e tantos outros movimentos em que os corpos e corpas pretos e pretas pulsam em comunidades contemporâneas, bailes em espaços periféricos que deixaram os morros e são acessados e consumidos avidamente em todos espaços urbanos. Com Fabiano Persi, somos levados a refletir para além dos bailes, para as formas com as quais os corpos pretos são visibilizados ou não nas cidades, somos convidados a vislumbrar o cabelo black como signo cultural dos povos pretos, a valorização do crespo também como símbolo de resistência. Com a voz e a movência corpórea da personagem, Persi com humor e leveza incute no espectador, pelo menos, uma motivação para se posicionar sobre as técnicas utilizadas pelo racismo estrutural que fomentam tanta indizibilidade e invisibilidade entre os corpos e as corpas pretas e suas poéticas.
Como sempre, deixei-me levar por minhas digressões e observo que, mais uma vez, falei para além de meu corpo-memória. Ao iniciar este texto, eu tinha como meta ser o mais sucinto possível, mas o exercício da crítica em mim só se estabelece quando sou provocado a me colocar em estado de movência, quando vejo minhas identidades e subjetividades sendo acionadas, quando me dou conta de que minhas vivências – e as dos meus – são pautadas e referenciadas, como corpos pretos diversos que somos, construindo espaços nossos e espaços outros, com nossas presenças e afetividades. A provocação para a escrita deste texto foi que cada integrante do Corpo de Crítica do Horizonte discorresse sobre qual seria o seu projeto de crítica. A resposta é muito mais complexa do que estas linhas e a tela do computador alcançam. Não obstante, hoje, me interessa a crítica que exija que eu me movimente para além do ato da crítica, que eu mantenha em mim como sujeito pensante o frescor da busca de uma conversa dialética com o meu tempo, sem necessidade de pontos finais…
[1] Sim, confrontado, pois o contato e aproximação nem sempre é pacífico, muitas vezes acionam sensações e sentimentos dissonantes, que nos movimentam para além da obra.
[2] Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-9DMHF2?locale=en.
[3] Acione http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/24-textos-das-autoras/923-conceicao-evaristo-vozes-mulheres.