– Por Clóvis Domingos –
[Imagem de capa: participação na ação Terreiro, parte da programação do Seminário Internacional de Mediação Cultural do FIAC- BAHIA]
Nos últimos anos a crítica teatral vem sendo para mim uma prática e uma pesquisa acadêmica. Desde 2016 quando ingressei no Horizonte da Cena venho escrevendo e publicando inúmeros textos a partir de diferentes trabalhos e, em 2018, comecei uma pesquisa de Pós-Doutoramento no PPGAC-UFOP para me debruçar sobre as questões e desafios da crítica contemporânea. Interessa-me a crítica como uma prática que não somente conversa com as obras, mas também com as questões do mundo. Crítica como codiscurso no campo das artes, entendendo que também outras dicções circulam e têm seu lugar numa imensa rede discursiva. Penso nos artistas, nos espectadores, nas instituições, nos cadernos jornalísticos culturais, na universidade etc.
Acho que comecei a escrever crítica quando participei do Agrupamento Obscena (um coletivo de pesquisa cênica de Belo Horizonte) e acompanhava inúmeros processos de experimentação e criação de artistas e, depois de muitas trocas e debates, eu compartilhava ideias e impressões na escrita de textos publicados num blog. Essa coletivização nas artes cênicas, como modo de colaboração e possibilidade de contaminação criativa, de alguma forma está presente na pluralidade de coletivos de críticos atualmente. De norte a sul do país é possível ver a emergência de plataformas críticas cobrindo diferentes cenas, comprometidas em dialogar com o que acontece na vida teatral, divulgando artistas e grupos, discutindo estéticas e políticas culturais.
Para mim a vitalidade da prática de crítica está em sua força de performar debates, mais do que emitir verdades sobre as obras artísticas. A crítica escreve, a seu modo, parte da história pública do teatro. Seu compromisso é amplo e também social, e, a meu ver, não é apenas o de julgar e avaliar esteticamente os espetáculos, mas participar da ampla discussão sobre os rumos e percalços do fazer teatral, tentando conciliar as dimensões semiológicas e sociológicas. Como arte e vida social se encontram, se afetam, se estranham? O pesquisador argentino Jorge Dubatti defende a ideia de uma “crítica local”, isto é, a importância do crítico falar daquilo que vê e acompanha em seu território específico. Essa geopolítica crítica seria fundamental para que outras narrativas sobre o teatro possam surgir. Como exercício de reflexão, o crítico local faria uma interlocução com a cena que está ali perto dele, participaria da construção e ampliação de sentidos.
Também penso crítica como invenção e criação. Ela pode subverter e propor diferentes modos de produção e difusão de seus fazeres, não se limitando apenas à análise, mas efetuando operações críticas a partir de diferentes dispositivos. A crítica hoje pode existir através de inúmeras modalidades: em forma de áudio, carta, diário, coleção de notas, poesia, vídeos, imagens, literatura de ficção. Aqui lembro de Bordieu que afirma que “o discurso sobre a obra não é um simples acessório, destinado a favorecer sua apreensão e sua apreciação, mas um momento da produção da obra, de seu sentido e de seu valor”.
A crítica desdobra a obra. Não fala sobre ela, mas a partir dela, com ela, através dela. Para mim a crítica é uma aprendizagem, daí meu projeto de crítica ser sempre algo inacabado, nunca se completa. Aprendo fazendo, buscando, experimentando. Aprendo lendo as críticas de outros, outras e outres. Não estou nunca pronto. Gosto de conversar sobre a prática da crítica para descobrir outros pontos de vista. Para mim o ofício do crítico é repleto de contradições e paradoxos. Gosto de quando a pesquisadora Josette Féral afirma que na crítica coexistem duas dimensões: “arte da solidariedade” e “arte do combate”. Ela é necessária para o teatro e sensível às dificuldades de sua produção no mundo atual (inclusive afirmando sua relevância), ao mesmo tempo que aponta caminhos, questiona opções estéticas e combate certos discursos presentes nas obras. O desafio de praticar a crítica teatral está nesse paradoxo: ela se opõe a qualquer tipo de censura e silenciamento, e, ao mesmo tempo, corre o risco de se tornar corretiva e conservadora. Então fazer crítica é estar o tempo todo em estado de crise, de pergunta, de revisão de seu gesto. Se a crítica se coloca em questão, expõe seus limites e possibilidades, assume erros e acertos, não abre mão de sua pulsão investigadora, se assume errante e incompleta, se reavalia, se posiciona, se transmuda, acho que dessa forma consegue expandir sua função social.
Percebo que gosto mais do ato da escrita do que necessariamente da crítica. Sinto necessidade e prazer em escrever sobre alguns trabalhos, pensar a partir deles, abrir espaços de conversa, esticar suas durações para além do momento efêmero da apresentação. Há obras que mobilizam meu pensamento, criam desassossegos e cavam conversas. A crítica é uma vontade de fala (a partir do contato com uma obra), e também precisa ser vontade de escuta. Há uma tensão produtiva e colaborativa entre a cena e a crítica: a cada momento quem convida quem a se rever? Quem se adianta numa discussão temática ou numa proposição estética? Quem de algum jeito provoca, estimula, força o pensamento? Não se trata apenas de um jogo de poder, mas de uma possibilidade de se desenvolver, de aprender, de se perder lugares cômodos e fixos. Não abandonar a postura provocativa, mas se livrar do dogma e dos modelos pré-estabelecidos. Reconheço que muitas vezes me repito em minhas análises de trabalhos, permaneço no confortável, escrevo a partir do que gosto e conheço.
Como sustentar, na crítica, a dimensão desejante? Como arriscar a palavra? Como criar deslocamentos e outros modos de se pensar arte? Como não impor uma interpretação, mas propor uma inquietação, garantindo assim uma multiplicidade de perspectivas? Como produzir um texto que navegue por um rio de interrogações? A função da crítica seria a de iluminar os sentidos de uma obra ou de complexificar suas possibilidades de recepção? Penso a crítica como interlocução, porosidade, relação, encontro e desencontro, uma aprendizagem permanente.
Busco a crítica como mediação, pesquisa, voz e escrita coletiva no mundo. Corpo implicado através de leituras divergentes e apresentação de argumentos que não se excluem, mas somam, tudo isso é bom para nossa saúde cênica e cívica. O singular no plural. O que pode o dissenso hoje?
Diferente dos que anunciam a morte da crítica ou sua falência, penso mais em reinvenção e fabulação (como afirmam os artistas, curadores e críticos mineiros Soraya Martins e Anderson Feliciano), desvios permanentes, novos horizontes de atuação. O que pode ter desmoronado é um tipo de crítica autoritária, hierárquica, polemista e personalista. Como manter a autoridade e exercitar a alteridade? O que me interessa é a pluralidade de escritas e vozes. Assim, quanto mais críticos atuarem, mais leituras de cena surgirão e o debate estará sempre se fazendo, uma pergunta chamando outra e cena e crítica em estado de turbulência e instabilidade.
O que me interessa é continuar aprendendo, persistindo, seguir movido e movente mesmo sem saber como fazer, recomeçar sempre… Uma conversa infinita.