– Por Julia Guimarães –
“Qual é o seu projeto de crítica?”. A primeira vez que ouvi essa pergunta foi em 2016, durante um encontro que realizamos no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, junto a outros três coletivos de crítica teatral. Naquele momento, tínhamos um projeto comum em plena gestação, a plataforma DocumentaCena[1]. Além do Horizonte da Cena (HdC), estavam com a gente a revista Questão de Crítica (QdC – RJ), o blog Satisfeita, Yolanda (PE) e o site Teatrojornal (SP). A pergunta, lançada pelos integrantes da QdC, resultou em um dos momentos mais férteis do encontro. Embora simples, ela traz uma dimensão reflexiva e metacrítica que vai direto ao ponto, ao chamar atenção para certa consciência ética e política associada à prática da crítica.
Este ano, em uma disciplina sobre crítica que ofereci na graduação da UFMG, reendereçei a pergunta para os alunos do curso e me senti bastante atravessada pelas respostas que apareceram. A maioria delas problematizava o viés elitista que a crítica de arte historicamente possui e projetava procedimentos para torná-la mais inclusiva, mais democrática.
Embora o problema do “elitismo” da crítica (e, por espelho, da arte) mereça um texto à parte para ser devidamente debatido, dada a sua complexidade, as respostas ecoam uma preocupação que tem me acompanhado nos últimos anos, especialmente após a ascensão da extrema direita no Brasil. A considerar que uma estratégia bem-sucedida para essa ascensão foi justamente a escolha do campo artístico como alvo de ataque[2], fica ainda mais evidente a existência de uma série de territórios e imaginários atualmente em disputa, o que, a meu ver, realça a necessidade de se pensar em como a crítica teatral pode tornar-se mais pública, abrangente e inclusiva.
Mas o que, exatamente, significaria pensar um projeto de crítica que ressalte essa sua dimensão pública? Como ampliar a comunidade de interlocutores sem perder o viés de radicalidade e resistência associados ao próprio pensamento crítico? Como fugir das dicotomias entre uma crítica que intenta “publicizar-se” tornando-se, às vezes literalmente, publicitária e uma crítica que, em nome da resistência aos imperativos mercadológicos exime-se da preocupação quanto à sua dimensão e relevância pública?
A considerar que a migração massiva da crítica de arte do jornal impresso para a internet trouxe como uma de suas consequências a perda de um leitor já estabelecido e (relativamente) diversificado, é possível pensar que o isolamento e o diálogo com as famosas “bolhas” seria uma realidade irreversível da crítica atualmente praticada na internet. No entanto, se ampliamos um pouco o escopo da internet para críticas de outras áreas (como cinema e literatura) e produzidas em outros meios (como o audiovisual), é possível encontrar exemplos que logram desfazer o nó dicotômico entre alcance de público e densidade crítica.
Então, o que tem me interessado no contexto específico das artes cênicas é fomentar, tanto sob uma perspectiva prática quanto discursiva, uma produção crítica que tenha em seu horizonte essa preocupação com abrangência e relevância pública. Mesmo ciente do grande potencial de fracasso que esse projeto virtualmente comporta – sobretudo pelo alcance reduzido do próprio teatro sobre o qual me interessa escrever – meu projeto de crítica atual tem a ver com o desejo de dialogar com esse problema.
O flerte recente com a crítica em meios audiovisuais está relacionado a tal intenção. Em 2020, criamos, no contexto dos projetos do Horizonte da Cena, um podcast[3] de crítica cuja primeira temporada se debruçou sobre o campo do teatro digital. Além de ser um modo de valorizar certa dimensão coletiva associada ao fazer crítico (os episódios eram sempre gravados no formato de conversas sobre a cena), o podcast – especialmente por lidar com a linguagem oral – viabiliza circuitos de produção e recepção distintos, se comparados às críticas escritas.
Ainda no mesmo contexto, tem me interessado “ocupar” o YouTube (tomo de empréstimo a expressão usada pela crítica Daniele Avila Small nesta[4] conversa), pois, mesmo com todas as suas contradições, que não são poucas, trata-se de uma plataforma com expressivo potencial de alcance, inclusive em relação a um conteúdo mais acadêmico. Certamente, o diálogo com esses espaços da internet e a pergunta sobre em que medida é possível entendê-los como espaços públicos também merecem ser debatidos, como fizemos recentemente no Webnário[5] da Revista Subtexto e em episódio[6] do podcast HdC sobre dispositivos.
Outro exemplo que me inspira, ao menos simbólica e conceitualmente, quanto aos “modos de ser público” da crítica contemporânea, são as ações realizadas pelo próprio Horizonte da Cena em 2017 (na época eu não integrava o coletivo), nas comemorações dos cinco anos da plataforma. No centro de Belo Horizonte, integrantes do HdC levaram para o espaço público diferentes perguntas, algumas relacionadas à palavra “crítica”. Coladas em poste no formato de “lambes” ou pregadas em um varal instalado na entrada do Sesc Palladium, frases como “o que você faz com sua crítica?” interpelavam transeuntes da região acerca dos sentidos mais amplos relacionados ao pensamento crítico.
Ainda que seja um pouco ingênuo pensar que ações como essas projetam um sentido efetivamente público para a crítica, penso que elas colaboram para instaurar imaginários próprios ao diálogo da crítica com o espaço público. De fato, há algo nesse desejo de produzir uma crítica mais pública, mais inclusiva ou de maior alcance que esbarra na própria dificuldade em “aferir” qualitativamente o “poder de afetação” que uma crítica potencialmente possui. Como na imagem usada pelo pesquisador Óscar Cornago em pelo menos duas ocasiões[7] para discutir o assunto, a prática da crítica poderia ser traduzida pela imagem de garrafas jogadas ao mar, com mensagens no seu interior. Trata-se de uma aposta que não pode ser pautada pelos resultados que irá atingir, uma vez que são, no limite, imprevisíveis e incalculáveis.
Portanto, ainda que não haja endereçamento preciso quando produzimos crítica, isso não impede que possamos buscar formas de fazê-la encontrar interlocutores diversos. QR codes espalhados pelas ruas que direcionem anônimos ao espaço onde estão publicadas, crítica impressa distribuída após o espetáculo, produção de vídeos, podcasts, programas em rádios, colunas de crítica teatral na TV. Enfim, a ideia de “ocupar” diferentes espaços com a crítica teatral é o que tem me interessado no momento, inclusive como modo de estimular também o próprio interesse e debate em torno do teatro, além de fomentar o pensamento crítico de um modo mais amplo. Certamente, há de se incluir, nesse intento, uma militância na busca por políticas públicas para viabilizá-lo.
É fato que a intenção de ampliar o alcance público de uma crítica também teria que ser discutida em diálogo com outros fatores, como a seleção de obras que teriam ou não interesse público ou as polêmicas em torno do que seria a produção de uma linguagem mais “acessível” a uma gama diversa de interlocutores. Minha aposta aqui, no entanto, ao menos nesse primeiro momento, não contemplaria uma lógica de “adequação” no que se refere a essas vertentes. Gostaria de entender primeiro como a linguagem e o conteúdo irão dialogar com a proposta de ampliação dos “meios” para a produção crítica (embora obviamente os meios condicionem linguagem e conteúdo, como já postulava a célebre frase[8] de McLuhan) para então, a partir da experiência concreta, refletir sobre as negociações de cada um desses campos entre si.
De qualquer forma, a considerar as questões propriamente “curatoriais” relacionadas a este projeto de crítica, o que percebo, revisitando minha própria trajetória, é um interesse em dialogar criticamente com obras que se apresentem como problemas e estimulem o público a revisitar suas próprias certezas. Obras que buscam os nós-cegos das questões e universos tratados, que almejem a complexidadade e a autorreflexividade como modo de colocar-se publicamente. Como pesquisadora, gosto também daqueles espetáculos que me desafiam a repensar e desontologizar o teatro, que me forçam a enxergá-lo de outra forma, a concebê-lo justamente como território de liberdade e de imprevisibilidades.
Dadas as preferências citadas, é possível construir um projeto inclusivo, abrangente, público e, ao menos no plano da intenção, popular, em diálogo com esse tipo de obra? Haveria muitos modos de ensaiar respostas a essa pergunta, mas por ora, me limito a habitar essa questão como modo de pensar e praticar a crítica.
[1] https://documentacena.com.br/
[2] Via protestos que ganharam visibilidade, especialmente a partir de 2017, ao se apresentarem como uma estratégica e populista “cruzada moral” contra a arte, sendo esta última constantemente associada a termos como “pedofilia” e “ideologia de gênero”.
[3] https://open.spotify.com/show/58ZYxPWSrHsoDg8OEJDdfV (Spotify)
[4]https://www.youtube.com/watch?v=f47qd9eBs0s&list=PL92ltra56MF0MAmtULga0BZtHWZO8e3ma&index=7&t=2600s.
[5] https://www.youtube.com/watch?v=nGsVeKRjWRs&t=12721s.
[6] https://open.spotify.com/episode/6Mk2bObcXqjJHXIMVT5pig.
[7] https://www.youtube.com/watch?v=3wTMS5yT16s&t=185s e https://www.youtube.com/watch?v=FcsrQMY2vL8&list=PLp7dGSJIRRn6EDcPTly7oyhg138Pizfpn&index=4&t=2573s.
[8] “O meio é a mensagem”. Cf: https://www.youtube.com/watch?v=RX-Gqa3_XpU.