Por Soraya Belusi
Parece que o circo mambembe do interior do país desembarcou na terra do humor satírico aos moldes de Tim Burton. Em “Não Alimente os Bichos” (*), a Cia. Subsolo59 carrega suas tintas na referência do universo sombrio e fantasmagórico tão reconhecível no trabalho do cineasta para, com elementos tipicamente populares e brasileiros, compor seu próprio recorte visual e cênico acerca de uma trupe circense abandona à solidão de seus próprios delírios.
Nesta “tenda dos horrores”, cabem o domador/açougueiro e sua mulher-macaca Monga, uma bailarina decrépita, uma cigana que não lê a sorte, um faxineiro sem face, um palhaço fracassado. A empatia do público se dá, neste sentido, não pelas qualidades dos personagens, mas, justamente, por suas peculiares bizarrices. Em busca de estabelecer essa relação palco-plateia, a dramaturgia prevê a entrada de um elemento do público, um “voluntário”, que irá fazer parte da cena circense. Instaura-se aí a “permissão” de um diálogo direto do espectador, da ideia da peça dentro da peça, a divisão entre o que é cena circense e o que é bastidor e, a partir daí, a encenação passeia com facilidade na construção de momentos diferentes nessas camadas de narração.
Esse elemento que vem da plateia, Tita, passa a integrar a história e é quem instaura o conflito do espetáculo. Espécie de pesquisadora, ela vê o circo com olhos de distanciamento e busca explicações racionais para aqueles comportamentos. Insiste várias vezes a personagem: “você prefere falar sozinho a falar com alguém real”? Enquanto aqueles personagens viviam em um mundo de imaginação e delírio coletivo – como na cena em que se serve pão e insiste-se que se trata de fígado –, Tita prefere a objetividade e este será o motivo que leva a um fim trágico.
Embora esse embate entre dois mundos – a objetividade de Tita e a subjetividade e imaginação dos artistas – gere bons pretextos para a dramaturgia, ficam pontos ainda confusos no entendimento do texto. Se Tita, de certa maneira, representa o público, já que estaria “voluntariamente” em cena, mata-la pode levar à leitura de que se mata a plateia? Por isso essa trupe nunca tem que a veja? De onde surge a história do irmão? Apenas pequenas questões já no fim do espetáculo que ficam soltas do restante da dramaturgia e acabam por alongar a peça e fazê-la perder em dinâmica.
Como uma verdadeira trupe, o grupo não se furta de cumprir as habilidades de um artista circense e, na própria dramaturgia, encontram boas soluções para demonstrar suas virtuoses. O texto reserva momentos para que cada elemento do elenco possa fazer o seu próprio número, sem que isso fique despregado do contexto do espetáculo: o número de tecido de Tita, a mágica do Sr. Benvindo, o domador pendurado nas tripas, o balé da matriarca (e também o da bailarina da caixinha de música), a cena do palhaço.
Todos os elementos de um espetáculo circense estão lá, somados a uma boa dramaturgia e a uma execução cuidadosa dos atores, todos com domínio corporal de seus personagens, tempo correto de ação e reação – destaque para a precisão do trabalho da atriz que dá vida à Matriarca, com sua bela composição e suas interferências utilizando trocadilhos de ditados populares.
A trilha sonora cumpre papel fundamental, sustentando o clima de “assombramento” da encenação e, em alguns momentos, pontuando ações e movimentos, como em desenhos animados. A música, executada ao vivo, ganha dimensão importante e talvez somasse ainda mais se fosse assumida em cena como mais um signo da representação teatral diante do espectador.
“Não Alimente os Bichos” extrai como alguns de seus elementos a herança do teatro popular e circense brasileiro, tão bem revisitado por grupos como o Galpão e, mais recentemente, o Clowns de Shakespeare. Utiliza-se das canções e das cantigas, dos tipos populares, do formato de esquetes. Subverte a lógica das histórias fofas infanto-juvenis, propondo um enredo macabro, rompe com a ideia do romantismo e propõe um fim trágico. Reconhece que a vida no circo não é nenhum conto de fadas.
(*) “Não Alimente os Bichos” integra a programação do Festival Estudantil de Teatro – Feto 2012