por Luciana Romagnolli
“Depois”. Foto de Lidia Sanae Ueta. |
“Depois”, do grupo Figurino e Cena, opera um jogo de densidades com os espaços e corpos. A paisagem sonora e a luz sobre o gelo seco avolumam o palco, que em outros trabalhos desta 8ª Mostra Cena Breve tem se revelado em seus vazios. No entanto, o vazio também circunda a figura do homem, o ator Paulo Vinícius, de quem se ouve frases fragmentadas em débil conexão, com frouxos ecos do “Primeiro Amor” de Samuel Beckett. Um discurso amoroso convencido de que inventa o ser amado. O mesmo vazio adensado envolve a mulher, a atriz Airen Wormhoudt, de quem está apartado no espaço e, por vezes, no tempo da encenação. Os corpos que falam suas subjetividades são inertes. A coreografia os move já mudos, num espelhamento de ações que perde, aos poucos, a harmonia, até o desencontro.
Os afetos se manifestam num tempo-depois, como anuncia o título, um futuro impotente no qual se instaura o estado de sítio e a morte, portanto, alheio à possibilidade real de ação ou afetação. Ainda que o foco de visão recaia todo sobre os atores e seus corpos, sua presença é problematizada. Desmaterializa-se na estagnação desses mesmos corpos, nos modos de subjetivação etéreos, nas vozes de texturas evocativas, que instalam distâncias, nos feixes de luz que atravessam esses corpos, na imagem surrealista do relógio – embora incoerentemente figurativa para o contexto onde se insere – e no diálogo que abandona as bocas dos atores para se realizar nas palavras projetadas em tela, nas projeções e sonoridades de alusão cinematográfica. A ausência dos dois aniquila seus corpos.
Fora de uma chave comunicativa ou de sentidos apreensíveis, tanto quanto de uma lógica temporal ou causal, o texto de Marcelo Bourscheid se inscreve nas chamadas “dramáticas do transumano”, propostas por Roberto Alvim, para quem “o texto de teatro deve soar como uma língua desconhecida, estrangeira, inventada, não-familiar, cujos significados rizomáticos nos atravessam de modo
oblíquo”. Contudo, a despeito da densidade inconsistente que assumem, as falas se mantêm em um território conhecido de associações, não operam maiores sustos nem deslocamentos, o que restringe suas forças e intensidades.
Jogo de cena de uma travesti
“Trajetória PL”. Foto de Lidia Sanae Ueta. |
Em junho, quando Pedro Silveira apresentou a cena “Trajetória PL” em Belo Horizonte, no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, escrevi o seguinte texto, que considero ainda válido para esta 8ª Mostra Cena Breve:
Trajetória ‘PL’, de Brasília, se apresenta como o relato documental de uma jovem travesti que resolve encenar sua própria história após vê-la narrada em uma montagem teatral por um ator profissional. O jogo de cena se estabelece, confundindo qual seria exatamente a relação do ator que vemos no palco – Pedro Silveira, dirigido por Fernando Villar – com a biografia que conta.
A construção do amor romântico
“Como Desaparecer Completamente”, do Ateliê Voador Companhia de Teatro (BA), é outra cena que, em seu desenvolvimento, toma um desvio que a distancia dos estímulos iniciais. Os atores Duda Woyda e Lucas Lacerda ocupam um palco nu, onde setas impressas no chão induzem direções. Desdobram um diálogo amoroso permeado de perda e descompasso. A imaginação do espectador é instigada a revestir a crueza dessa encenação, à medida que as falas sugerem imagens – como a de um homem e uma mulher – às quais a materialidade visível não corresponde, num atrito entre a artesania teatral e a ficção.
O despossamento da ilusão se acirra por um mecanismo de inversão, que repete a trama com as vozes trocadas, confundindo mais as identidades, despregadas dos indivíduos corporificados. Essa segunda versão do diálogo intesifica os tons românticos, aproximando-se, pelas atuações e pela trilha sonora que invade a cena, de uma linguagem novelesca oposta à crueza inicial. Sobrevive a contradição de a história de amor entre um casal heterossexual ser representada por um casal de homens, provocadora na medida em que desestabiliza a igualdade/desigualdade desses afetos. Com isso, impregna-se do mesmo sentimentalismo com que se construiu o imaginário do amor romântico heterossexual.
Comédia redentora
“Epílogo – A Vaca Pródiga”. Foto de Lidia Sanae Ueta. |
“Epílogo – A Vaca Pródiga” compõe o espetáculo “A Vaca Pródiga”, dirigido por Nina Rosa Sá a partir da obra de Mark Harvey Levine. No entanto, justamente o epílogo ora alçado à condição de cena independente não faz parte dos escritos do norte-americano. É uma criação da atriz Tatiana Blum, que contracena com Pablito Kucarz. Ela como a vaca, ele, o cabrito. Seu texto é uma comédia leve em formato fabular, ancorada na personificação dos bichos e na distinção entre suas percepções de mundo: prestes a morrer, a vaca toma consciência do seu ser-vaca e do estar em cena, despertando um jogo metateatral, enquanto o cabrito permanece alheio.
Tatiana conduz a comicidade com uma interpretação amparada em trejeitos e no delineio da sagacidade recém-adquirida pelo mamífero, que oferece um ponto de vista incomum para os hábitos humanos e se permite uma alfinetada no ideario do casal Sartre-Beavouir, sem ambicionar críticas ou reflexões mais contundentes, mesmo diante da iminência da morte. Em contraponto, Pablito consegue uma expressão de incompreensão e desinteresse própria de seres desprovidos de raciocício, que favorece a dinâmica cômica entre os dois. A direção e a sonoplastia seguem o tom pop característico do trabalho de Nina Rosa Sá, norteado pelo entretenimento.
No decorrer da cena, contudo, o Teatro de Breque se desfaz de qualidades que havia começado a desenvolver. A principal delas é a substituição brusca do estado de conscientização por um discurso religioso redentor, logo após o momento em que a personagem vaca enfrenta tranquilamente uma das maiores angústias humanas diante da finitude: a putrefação do corpo. Ao recorrer à idealização de um pós-morte que seja “como um afago”, age como o “homem da crença”, descrito pelo filósofo e crítico de arte francês Didi-Huberman, que “prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para conformar e informar”.
* Textos originalmente publicados no blog da 8ª Mostra Cena Breve Curitiba.