– por Victor Guimarães-
Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar à contrapelo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial…
Eleonora Fabião1
Este é um texto mais escorregadio do que de costume. Na tentativa de encontrar algo sobre o que escrever, dentre o que vi recentemente, um acontecimento público estranho se impõe como necessidade. Sei que habito aqui um território argiloso, no interior do qual caminho sem sequer uma bússola quebrada – as discussões do campo da performance são sofisticadíssimas e eu não poderia estar mais distante delas –, mas decido me atrever. Menos por índole audaciosa e muito mais por não conseguir me livrar desse acontecimento desde que o presenciei. Ou participei dele. Ou fui uma das quase vítimas de suas consequências. Ou sei lá. Reverbero então aqui as reminiscências dessa noite, na tentativa de fazer trabalhar a inquietação que tem me habitado desde então.
No último dia 7 de outubro, Belo Horizonte acordou com a notícia de que Marília Mendonça faria uma apresentação gratuita na cidade, em plena segunda-feira à noite, na Praça da Estação. A notícia correu no zap e logo soube que era impossível não estar ali, não fazer parte daquilo. Se alguém aí por acaso vive isolado numa bolha a metros do chão do Brasil, saiba que o nome de Marília Mendonça é sinônimo de um dos maiores fenômenos populares deste século. Goste-se ou não, suas canções habitam o imaginário coletivo, sua figura atravessa classes sociais, suas letras cristalizam economias afetivas contemporâneas, sua voz mobiliza os corpos mais diversos. Como já seria de se esperar, a cidade entrou num ritmo diferente naquele fim de tarde, e naquela noite tinha mais gente concentrada na praça do que em qualquer outro evento ao qual eu tenha comparecido ali nos últimos anos. Mais que qualquer outro show, mais que comício do Lula, mais que qualquer manifestação multitudinária.
No imaginário coletivo da cidade, aquela noite ficou marcada pelas já tradicionais manchetes protofascistas da imprensa local, que desenhavam o cenário da aglomeração como uma espécie de apocalipse, feito de arrastões, esfaqueamentos e outras atrocidades perpetradas por gente pobre, majoritariamente negra, vinda da periferia e ainda por cima fã de música barata. Na memória de quem esteve lá, talvez outra lembrança se imponha: a de uma ação performática inesquecível, que redesenhou as trajetórias do olhar, da escuta e da atenção.
Enquanto mais de uma centena de milhar de gente se espremia num espaço exíguo, na tentativa vã de ver um pedaço do palco ou no exercício do gogó da sofrência a plenos pulmões, uma ação subitamente desviou as atenções. Passados já uns vinte minutos da apresentação, a praça e as duas pistas da avenida inteiramente apinhadas, um burburinho começa do meu lado, eu me viro e vejo: uma pessoa trepada em cima do semáforo da avenida, dançando a muitos metros do chão de asfalto. Parecia mentira: enquanto se equilibrava com uma destreza impressionante na estrutura metálica, a figura fazia movimentos de pole dance, dançava solenemente ao ritmo da canção, atraía todos os celulares em volta. O risco era iminente: uma queda certamente seria fatal e desencadearia uma correria desenfreada, em um espaço multitudinário cheio de crianças. Mas cada movimento era calculado com precisão e fluía com uma leveza tal que parecia acontecer na sala de casa, e não nas alturas de um semáforo muito mais elevado que o palco do evento. Pouca gente conseguiu ver a cor da roupa de Marília Mendonça naquela noite, mas a performance poderia ser avistada a centenas de metros de distância, de qualquer ponto da aglomeração. Tudo terminou sem nenhum ferido, virou meme ou caso de polícia e ninguém até hoje sabe a identidade ou o destino do protagonista da noite, mas enquanto durou, aquela ação foi um dos acontecimentos estéticos mais desafiadores que presenciei em Belo Horizonte nos últimos anos.
No dizer de Eleonora Fabião, “performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Educadores da percepção que ativam e evidenciam a latência paradoxal do vivo – o que não pára de nascer e não cessa de morrer, simultânea e integradamente. Ser e não ser, eis a questão; ser e não ser arte; ser e não ser cotidiano; ser e não ser ritual”. Como não enxergar nesse acontecimento, tratado como curiosidade corriqueira ou fait divers, um caráter performático altamente pronunciado, no sentido de que todas essas categorias – arte e não-arte, cotidiano e não-cotidiano, ritual e não-ritual – vacilam diante do que presenciamos? Há quem veja ali um artista extraordinário e quem enxergue nada mais que um cidadão irresponsável, que estragou o espetáculo e colocou em risco uma porção de gente, mas essas definições são muito menos importantes do que a potência de vacilação que a ação instaura. Na tentativa de enfrentar o acontecimento que se impunha diante dos meus olhos, meus próprios sentimentos oscilavam constantemente: admiração, medo, entusiasmo, raiva, prazer, angústia.
A inquietação diante das categorias pré-estabelecidas, a força disruptiva da performance emerge aqui onde menos se espera. No meio de uma avenida. Na aglomeração multitudinária de um evento de música popular. Na decisão de um corpo de transformar um objeto tão inusitado quanto um semáforo em palco provisório. Nas coreografias sinuosas – e solenemente silenciosas – que desafiam a espectatorialidade padrão da música romântica, quase sempre feita de passividade corporal e canto gritado. Na instituição abrupta de um foco de atenção radicalmente outro, que passa a competir com a atração principal da noite. Na temporalidade estranha que se instaura de repente, feita de microssegundos densos, nos quais um escorregão pode arruinar tudo.
Mais do que o que acontece em cima do sinal de trânsito, no entanto, a força da performance consiste em fazer com que tudo em volta adquira um sentido novo, inesperado. Os olhares desviam da extremidade da praça para o meio da avenida. Cada espectador é transformado em participante de um outro espetáculo, paralelo, para o qual ninguém foi convidado, que não teve hora marcada para começar e nem se sabe quando vai terminar, e que carrega consigo uma imprevisibilidade da qual não está desterrada a possibilidade de um encerramento trágico. O risco, essa palavra tão gasta no vocabulário da crítica de arte, reassume aqui sua literalidade: na iminência da queda, a vertigem recupera sua potência e faz cada segundo se transformar em instante privilegiado. A placa do museu – transformada simultaneamente em palco e adereço cênico – passa a fazer parte de uma composição conceitual acidental, mas intensamente provocadora: o que é arte e o que é ofício? O que é normal e o que é extraordinário? Quem é que define o que cabe no museu e o que deve permanecer na rua?
Esse acontecimento estético imprevisto, anônimo, informe, tem a força paradoxal de nos instigar a pensar novamente todo o sistema oficial da arte – inclusive o que comumente chamamos de performance. Sua imprevisibilidade avassaladora nos obriga a questionar a atual força disruptiva dessa modalidade, num momento em que as ações cada vez mais acontecem em espaços e tempos previamente determinados. Sua amplitude democrática nos impele a repensar a relação contemporânea entre performer e público, e a tendência nada minoritária de encontros entre os artistas e uma plateia quase sempre mais do que acostumada a esse tipo de intervenção. Sua documentação selvagem – só o que existem são registros dispersos, veiculados pelos espectadores nas redes sociais – nos convida a repensar as estratégias de museificação da arte da performance e sua disseminação. Seu anonimato duradouro nos instiga a desafiar a obsessão pela autoria na arte contemporânea, em que os nomes parecem importar tão ou mais que as obras e as proposições. Sua completa ausência de suporte textual – não sabemos quem era o protagonista da ação, nem sua história, nem suas motivações – desafia um sistema artístico contemporâneo cada vez mais dominado por uma retórica conceitual excessiva, que faz com que cada obra ou ação venha sempre acompanhada de uma bula – que, muitas vezes, é reproduzida pela crítica.
Estamos diante de um acontecimento que quase ninguém achou que poderia ser arte. De uma curiosidade abordada por jornais sensacionalistas como coisa de doido ou pela turma do Twitter como um meme passageiro a mais. De uma ação inusitada protagonizada por alguém que ninguém sabe quem é, nem por que fez isso, nem de onde veio, nem onde está. Talvez seja justamente disso que estamos precisando para voltar a pensar em palavras como disrupção. Ou dissonância. Ou risco. Ou experiência. Ou performance. Ou arte.
Todos os registros da ação aqui reunidos são capturas a partir de vídeos veiculados no Twitter.
1FABIÃO, Eleonora. “Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea”. Sala Preta, 8, 235-246, 2008.