Por Soraya Belusi
“Na verdade, não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.”
(Jorge Luis Borges)
A marca que algumas obras de arte perpetuam em seus contextos é inegável. Recortando este universo e limitando-o à mais recente história do teatro brasileiro, é obrigatório passar, nos últimos 20 anos, pela contribuição estética, teórica e processual que coletivos como o Teatro da Vertigem, o Grupo Lume e a Cia. dos Atores, só para citar três dos mais relevantes, deram ao pensamento teatral contemporâneo brasileiro. Este último, sintetizado criativamente pelo diretor Enrique Diaz, somou à sua lista de grandes espetáculos, em 2004, a criação de “Ensaio.Hamlet”, montagem ovacionada pela classe e pela crítica, que instaurou, condensou, toda uma ‘forma de fazer’ da trupe carioca – sistema criativo que voltaria a inspirar o grupo, em “A Gaivota”.
“Na verdade, não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.”
(Jorge Luis Borges)
A marca que algumas obras de arte perpetuam em seus contextos é inegável. Recortando este universo e limitando-o à mais recente história do teatro brasileiro, é obrigatório passar, nos últimos 20 anos, pela contribuição estética, teórica e processual que coletivos como o Teatro da Vertigem, o Grupo Lume e a Cia. dos Atores, só para citar três dos mais relevantes, deram ao pensamento teatral contemporâneo brasileiro. Este último, sintetizado criativamente pelo diretor Enrique Diaz, somou à sua lista de grandes espetáculos, em 2004, a criação de “Ensaio.Hamlet”, montagem ovacionada pela classe e pela crítica, que instaurou, condensou, toda uma ‘forma de fazer’ da trupe carioca – sistema criativo que voltaria a inspirar o grupo, em “A Gaivota”.
Natural, por isso, que uma geração inteira de jovens artistas tenha assistido e apreendido o trabalho monumental de releitura e apropriação empreendido por Diaz e seus companheiros de grupo. E, se não viram, muito provavelmente ouviram os relatos da habilidade da encenação de Diaz em levar para a cena, de maneira metalinguística, a configuração de um ensaio para a montagem de “Hamlet”, de William Shakespeare. Código este que abre espaço para que formas narrativas contemporâneas trabalhem a serviço dos atores para que contem a história do Príncipe da Dinamarca.
Mas por que falar tanto de “Ensaio.Hamlet” se este texto pretende dialogar com outro espetáculo, no caso, “Horácio”, do Grupo Tarja? Porque, para mim, foi indissociável a fruição de um com a imediata comparação com o outro. Até que ponto nos impregnamos daquilo que vemos? Qual a ideia de originalidade que se faz na arte contemporânea? Qual o limite entre plágio e homenagem? Se o resultado artístico deste ‘contágio’ é relevante, importa ‘seu grau de parentesco’? O próprio Shakespeare não teria sido “acusado” de plagiar autores menos conhecidos de sua época? Como interpretar o que disse Jorge Luis Borges (citado acima) neste caso?
Tomemos como provocação a obra de Walter Benjamim e sua reflexão acerca do conceito de aura na obra de arte. Em seu texto “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, de 1935, Walter Benjamin define aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, 1994, p. 170). Seus principais elementos são a autenticidade e a unicidade. A autenticidade da obra de arte dependeria, então, da materialidade da obra, do substrato físico que a envolve, a partir do qual se desenrola sua história, e no qual ficam registradas as transformações físicas e as relações de propriedade pelas quais ela passa. A reprodução não consegue levar consigo o testemunho da história gravado no substrato original, autêntico, o que provoca, segundo Benjamin, a perda da autoridade e do peso tradicional da obra de arte. Para ele, a autenticidade da obra de arte aurática é única e não pode ser reproduzida.
“Horácio” é um espetáculo criado em 2011, dos cariocas do Grupo Tarja, formado por Marcio Vito e Larissa Rodrigues (que dirigem esta montagem), além dos atores Felipe Sut, Ian Capillé, Lorrana Mousinho, Luisa Reis, Luiz Phillipe Tavares, Rach Araújo, Raisa Mousinho, Rodrigo Reinoso, Tainá Louven, Thiago Monte, que se conheceram no curso de artes cênicas da Unirio. A dramaturgia do espetáculo se sustenta na ideia de que Horácio, o amigo de Hamlet, escuta seu pedido ao fim da peça de que sobreviva para contar sua história. É ele quem conduzirá o público pela vingança trágica do príncipe da Dinamarca. Esta é a deixa para que a encenação seja conduzida de maneira a romper com o formato tradicional, aceitar a fragmentação, o comentário com a plateia, a atualização, a crítica pelo humor. Elementos que o trabalho, até certo ponto, manipula com maestria.
“Horácio”, muito provavelmente, não existiria não fosse “Ensaio.Hamlet”. O primeiro parece ser substrato do segundo. Uma “reprodução”, salvo todas as devidas proporções, que, embora muito bem realizada tecnicamente, não carrega a “aura” que tem o original. “A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica”, dizia Benjamim. O espetáculo do Grupo Tarja tem muitas qualidades como experiência teatral se o analisarmos isolado do contexto cultural que o gerou, mas as semelhanças com o trabalho da Cia. dos Atores são tantas que tendem a soar como contaminação excessiva.
Não se trata de questionar as referências e as possíveis citações que o espetáculo tenha. Algumas delas muito sutis e bem-empreendidas, como a escolha de uma atriz para viver o protagonista, remetendo à montagem protagonizada por Claudia Abreu ou a carnavalização de outro momento, remetendo ao “Ham-let” de Zé Celso.
Os pontos de intersecção entre a obra da Cia. dos Atores e do Tarja já começam pelo espaço cênico. Os atores estão em cena, numa espécie de arena, quando o público entra. Cadeiras e outros elementos contemporâneos (óculos escuros, guitarra, capacete) e referências pop (como a maquiagem escorrendo pelos olhos) preenchem o espaço. A relação que estabelecem com o texto também é muito similar, atualizando-o, comentando-o, ironizando-o. “Você acredita em Hamlet de cavalo branco?”. As semelhanças continuam ao longo da encenação (a forma como a música e a água são utilizadas no afogamento de Ofélia, os atores lendo trechos da peça, espada de desenho animado, lembrando o Power Rangers…), mas citá-las todas aqui seria um exercício exaustivo e desnecessário – até porque esses pontos de contato estão nos olhos de quem vê, no caso, os meus.
Independentemente das conclusões quanto à proximidade ou não dos espetáculos (se essas semelhanças entre as duas montagens forem propositais e se tratarem de uma contaminação-homenagem, foram até muito bem feitas), “Horácio” atinge relevante resultado em suas propostas cênicas. A imagem clássica de Hamlet carregando a face da caveira dá início à apresentação. Mas essa construção é logo interrompida pela apresentação de que aquele é Horácio e que ele será o narrador da história. Esse pequeno deslocamento dramatúrgico proporciona uma série de recursos à dramaturgia e à encenação, como os comentários que este personagem faz ao longo da trama, numa função próxima ao do coro da tragédia, os apartes com a plateia, a síntese de trechos que não serão ‘encenados’, o jogo ator/personagem que estabelece com os outros integrantes do elenco. Em alguns momentos, esse recurso é utilizado excessivamente, cabendo ao personagem funcionar quase que apenas como um “ponto” que sopra o texto ou faz pequenas piadinhas. Nesses momentos, se enfraquece. Gera empatia com o público, mas nem sempre acrescenta camadas à dramaturgia.
As composições de alguns atores se destacam no equilibrado elenco. Polônio aparece com sua bestialidade e infantilidade ressaltada pela interpretação do ator que lhe dá vida. Na pele do protagonista, a atriz mantém o vigor e a perturbação física que o personagem demanda, cabendo a ela os momentos mais “emocionais” da montagem. Em contrapartida, falta à caracterização da rainha o entorpecimento diante da realidade, tão bem ilustrado no breve momento da cena dos óculos escuros, os quais ela insiste em usar para não enxergar um palmo à sua frente. Cláudio também requer de algo mais para se mostrar tão sanguinário.
O humor é um dos pontos mais fortes da abordagem dada pelo espetáculo, como no momento em que morre Polônio, em que se estabelece uma convenção com o público. O único senão é que este elemento é repetido à exaustão em outras cenas (“morri!”), como se o grupo tivesse se empolgado com o resultado (riso) conquistado junto ao público.
Os símbolos também são utilizados de maneira inteligente e divertida. Os olhos são marcados pelo luto, simbolizado pela maquiagem preta, numa possível alusão de que aqueles personagens derramaram muitas lágrimas, ou ainda quando Hamlet se mostra tão ensimesmado em sua vingança que usa um capacete. A marchinha de Carnaval na cena do banquete de Cláudio, enquanto Hamlet diz que o hábito de beber e dançar já deixou o país famoso em terras estrangeiras, nos remete diretamente ao próprio Brasil. O grupo de atores formando o espectro do pai do Hamlet, além de uma bela imagem, remete aos coros gregos, espécie de “consciência” que insiste em assombrar Hamlet.
“Horácio” materializa em cena algumas questões caras ao teatro contemporâneo no Brasil: o processo colaborativo dos grupos, a relação com os clássicos e a construção de dramaturgia própria, as múltiplas técnicas a serviço do trabalho do ator, a relação com o espaço e com o espectador, resolvendo, em sua maioria, de maneira inventiva as propostas que levanta. Mas, cada espectador traz consigo, para o encontro teatral, seu próprio repertório. Minha relação com o espetáculo foi, em vários momentos, interrompida por uma sensação de “acho que já vi isso antes… e mais bem feito”. Até que ponto eu é que não estava excessivamente assombrada por “Ensaio.Hamlet”?. É inegável a marca que alguns espetáculos deixam.