Por Soraya Belusi
Exatamente como as coisas deveriam ser: um cenário enigmático, uma bela composição pelo espaço, figurinos bem harmonizados cromaticamente, uma dramaturgia fragmentada entrecortada por situações de humor e elementos fantásticos, como a presença ausente de um camelo sem corcunda. Todos os elementos aparentemente “corretos” confluem para um grande resultado? Assim seria se as coisas fossem como deveriam ser, mas, não, como elas realmente são. É a partir do próprio argumento do espetáculo “Pessoas ou Coisas Podem Mudar o Mundo, mas Hoje Nada Aconteceu”, da Cia. dos Aflitos, que busquei dialogar com as escolhas realizadas pelos criadores envolvidos nas questões que me parecem mais problematizadas pela montagem, como a relação com o espectador, a quebra da ilusão teatral, a construção de uma dramaturgia própria, organizada de maneira fragmentada, utilizando-se como matéria-prima os relatos pessoais dos atores.
Ao longo dos 60 minutos cronometrados para os alarmes soarem, o espetáculo parece carecer de uma seqüência de bons achados (como a imagem das quedas, a linguagem metafórica e circular, entre outros pontos) que, ao não serem explorados de maneira a ganharem força no decorrer da cena, tornam-se perdidos no tempo e no espaço. Um desses elementos pode ser notado logo na primeira cena. Ainda do lado de fora do teatro, o público é surpreendido por um ator/personagem que pede que escrevam cartas (a serem usadas posteriormente na encenação) com respostas para a seguinte pergunta: ‘como as coisas deveriam ser?’. Em seguida, surge um outro ator/personagem sugerindo que igualemos os horários dos nossos relógios e, metaforicamente, ‘sintonizemos nossos tempos’.
A questão é que, embora sejam muito fortes poeticamente, nenhum desses dois elementos (apenas título de exemplo) é reapropriado pela montagem de forma a justificar a relevância que lhe és dada anteriormente. As cartas viram frases soltas e quase inaudíveis ao fim da peça, apenas um ‘achado’ para encerrar o trabalho. O efeito de realidade com o pedido de a plateia manter ligados seus dispositivos eletrônicos e programar o despertador também não agrega camadas simbólicas ao espetáculo da maneira como foi utilizado (sem contar que não funcionou, já que os despertadores parecem não terem tocado sincronizadamente).
Embora o elemento tempo esteja presente o tempo inteiro (seja nos relógios do cenário, no relógio de bolso do ser imaginário, no relógio que marca o tempo na sonoplastia), esse peso não se faz sentir na cena e na plateia. A proposta cíclica da dramaturgia enfatiza essa questão temporal, mas não dá conta de torna-la presente na cena e não apenas ilustrada.
Este trabalho da Cia. dos Aflitos parece ser descendente direto de uma renovação no fazer dos grupos de teatro, influenciados pelo processo colaborativo e pela atuação de um ator-criador, trazendo consigo as potências e as limitações impregnadas a esse ‘modus operandi’ (como bem lembrado pelo professor Fernando Mencarelli em sua fala analítica). Os depoimentos pessoais dos atores não parecem dar conta da dimensão poética e complexa que a dramaturgia pretende alcançar. O invólucro parece dizer muito e, as entrelinhas parecem esconder mistérios, as arestas poderiam ser possibilidades de diálogo e interpretação do próprio espectador. Mas, no fim, os elementos parecem ter sido escolhidos para que o espetáculo fosse como deveria ser (em sua forma estética), e, não, pela real simbologia que carregam ao serem articulados lado a lado. A dramaturgia parece querer trabalhar em distintas camadas de diálogo com a plateia e com a história, no plano do imaginário (com a presença de uma espécie de ‘guardião do tempo’, da memória (com as imagens e indagações do que se passou), do presente teatral (na quebra com a ilusão e no contato direto com o espectador). Mas não alcança o objetivo de articula-los de forma a potencializar cada uma dessas possibilidades em cena.
A situação resumida na sinopse do espetáculo (a relação entre o casal e uma filha e a dificuldade de lidar com o tempo no que tange à necessidade da mudança) não se torna problematizada, tornando o espetáculo um exercício estético potente, mas ainda carente de uma maior elaboração dramatúrgica.