Crítica a partir do experimento performático Limbo (Coletivo Tropeço/Belo Horizonte)
– por Mário Rosa
Fotos de Daniel Pitanga
Noite de 21 de fevereiro de 2019, e a segunda vez que assisto[1] ao trabalho. Neste dia não há a frase “o chão acumula água” projetado no prédio em frente ao apartamento em que se dá o experimento. Mas, como veremos, a água está lá.
Mina, molha o corpo sem cobri-lo, sem matá-lo.
E ele surge lentamente. A janela aberta, a rua, baixo centro, barulho da cidade, com pessoas nos bares, música que vem de fora, trânsito, um relógio luminoso à distância. Estamos sentados, seis pessoas defronte à janela da sala do apartamento, terceiro andar.
E aquele corpo pela estreita varanda, como que dança, como que lento caminhar.
Limbo: um portal, um entre e ele lá: corpo negro, a iluminação que vem debaixo, o quadro, a tela.
Janela tela.
Desse experimento performativo com direção de Anderson Feliciano, o ator Demétrio Alves utiliza do passado de seis anos de trabalho no interior de uma mina na cidade de Congonhas (Minas Gerais) e do hábito de fotografar pássaros para criar algo que se refina na presença e nas temporalidades. Sabemos de algumas informações, essas que acabei de mencionar, mas o que vemos vai além, ou não importa tanto os dados, pois as figurações daquele corpo ao som da cidade expõem muito mais.
Muito mais. Como disse, o corpo que passa, que segue lentamente até desaparecer.
Por algum tempo, somente a cidade vista e ouvida. Até que uma cabeça surge por baixo no centro da janela. Há algo de fantasmagórico, de tateante, de presença subterrânea que se apresenta entre o apartamento e o fora, compondo no campo da ação algo de germinativo, de força estranha que nasce ou insiste em não morrer.
O que surge ou resiste, é o corpo. Corpo negro e as questões que ele coloca: é tema, testemunho, cena, forma[2] e possíveis fabulações.
Desses movimentos, muitas percepções e associações: de memórias particulares até algo que é partilhado coletivamente pela imagem que remete ao passado que nos assombra e pelo indício da concreta violência atualizada sobre os corpos; do quadro que nos causa a impressão da impossibilidade de materialização do vivente, que ronda como espectros a espreitar a vida social nas bordas do direito à existência; da fabulação que se abre para o exercício de reelaborar formas e reorientar temas e lugares padrões de enunciação.
Depois de um tempo em que passamos a ver e ouvir a cidade pela janela com outras atenções e esperas, ele novamente aparece parcialmente e em pé. É quando também se percebe no campo fronteiriço daquele limbo uma possibilidade de força daqueles que fazem da fantasmagoria mais do que o assombro, como se configurasse ou nos lembrasse de que algo que não passa pode ser também prenhe de desejos e gestos de insurreições, ou seja, de movimentos pretéritos que, soterrados em alguns momentos da história, voltam pra dizer do intempestivo do tempo, dos sonhos já sonhados e da vida que não se conforma.
Ele espreita e permanece, ronda e fixa a presença à beira do quadro, da tela, e ali parece dizer das brechas, da coreopolítica que reconhece a dança no vazio e a visibilidade como exercícios de potência para o dissenso.
Limbo é mais um movimento que o Coletivo Tropeço realiza no sentido de conjugar corpo, memória e fabulação. A partir da busca de imagens e lembranças disparadoras, o trabalho performativo ganha densidade pelos modos de utilização do tempo e da apresentação da corporalidade negra. Procura seguir esse caminho encontrando na presentificação e na sequência de ações as forças que tensionam nossa herança colonial e que abordam as complexas relações contemporâneas do trabalho e dos afetos.
Nesse experimento, que pode se desdobrar ainda em muitas frentes, esboça-se a ideia de um equilíbrio precário de subjetividades tropeçantes e as tentativas de reelaboração das lembranças e dos esquecimentos como forma de existir nos embates às muitas formas de capturas.
É interessante perceber como há na obra um esforço entre a direção e o ator/performer para apagar a intenção da representação nas ações propostas. Isso traz alguma tensão, criando até mesmo certo incômodo e instabilidade que complexifica o que é visto. Falo aqui do que se deixa perceber do pensamento-ação, dos procedimentos já conhecidos nos trabalhos de Anderson Feliciano e das negociações das vontades e das experiências a partir de uma ideia norteadora e da parceria dos artistas envolvidos. Por vezes um curto-circuito, ou poderíamos falar de um movimento tropeçante na elaboração da proposta em que parece existir a intenção de fazer circular os lugares e as formas de enunciação do corpo.
Num dos últimos momentos do trabalho, Demétrio sobe numa superfície não vista pelos espectadores, com camisa molhada olhando para o céu. O observador de pássaro parece buscar mirar algo que também não vemos. A musculatura do seu corpo, uma postura meio alquebrada, entre o que se sustenta e o que se recolhe, se mantêm por um tempo. O chão daquela mina acumula água, e só faltava respirar. Há algo nessa postura que inicialmente destoa dos movimentos anteriores, como se o trabalho anterior de construção de imagens cedesse, de alguma forma, a uma narrativa e sua correspondência ilustrativa. Até que a duração daquela ação enfraquece o esboço de representação e a imagem fetichizada do corpo molhado. Novamente tema, testemunho e ação e outros devires encontram uma mistura ali condensada na sustentação de uma frágil imobilidade.
No entanto, o que resiste nesse corpo que se ergue como se arrastasse é também a possibilidade de presença, de conseguir olhar e encontrar a beleza, que pode ser a ruína, que pode ser o voo de um pássaro, talvez nada apaziguador e reconfortante pela permanência de um mundo que só permite a alguns existir nas fendas ou em túneis subterrâneos sobre o risco do desmoronamento.
E o que se afirma também aqui é a existência a partir das fendas, é a memória num campo de disputa, é a possibilidade de assombrar e dar impulso a um sutil deslocamento no espaço e no tempo que ajude a minar o atolado da história.
[1] O trabalho foi concebido e apresentado em 2017, reelaborado numa proposta audiovisual e reapresentado este ano.
[2] Azevedo, José Fernando Peixoto de. Eu, um crioulo. (série Pandemia). São Paulo: n-1 edições, 2018.