por Luciana Romagnolli*
Por mais díspares que sejam entre si na linguagem os textos lidos na terceira noite da Janela de Dramaturgia, “João e Maria” e “Fôdo” se assemelham no impulso criativo de tomar uma obra literária preexistente como ponto de partida para uma nova fábula, jogando com a intertextualidade para multiplicar os sentidos de suas escritas.
“Fôdo”, Wester de Castro o faz sob o efeito da leitura de “A Obscena Senhora D”, de Hilda Hilst. Sua escrita tributária absorve elementos da mistura entre o sublime e o grotesco à qual a autora manejou como poucos. Mas Wester adota o olhar de fora sobre aquela obra e aquela mulher, criando um protagonista masculino que deixará aflorar lembranças e afetos em relação à ex-moradora de uma casa ora vazia. Nela se pode reconhecer Hillé, a senhora a quem chamavam de porca nas redondezas, embora a conexão direta entre os personagens das obras correlatas nunca seja verbalizada no texto do autor mineiro, que o edifica de modo independente, por mais que recorra ao espectro da personagem de Hilst.
A fábula, então, se constrói pelo viés desse homem já na velhice, em uma relação impessoal com um corretor de imóveis. Este não percebe os sutis indícios de abalo interior sofrido pelo personagem diante da casa e expostos ao público, dali em diante, por cenas que abrem brechas no tempo – como flashbacks – para apresentar momentos passados do convívio com a antiga habitante do local, revelando nesses fragmentos o impacto do encontro com aquela mulher.
Wester recupera temas caros a Hilst e despeja o linguajar chulo que a autora usou com liberdade. Toma os contornos e ecos de sua personagem e sobre eles tece sua fabulação, como o criador que vê na obra alheia ideia semelhante à que lhe move e faz de sua criação uma conversa com um universo prévio. “Fôdo” tenta dialogar mais do que com os personagens, também com a voz poética e erótica de Hilst e suas indagações existenciais. A devassidão que em Hilda é depravação de costumes, poeticamente trabalhada na linguagem criando uma textura viscosa que subverte os limites do pornográfico e do erudito, na escrita de Wester assume uma qualidade diversa, mais coloquial e prosaica.
A mulher-porca, fonte da libido e sobre a qual se concentra o mistério humano, surge em “Fôdo” com a carne exposta, simbolizada no seio revelado da atriz. Apesar da nudez e dos diálogos que trava com o homem e com a morte, ela não se revela diretamente, mas, sim, pelo intermédio desse homem a quem afetou. Permanece, portanto, desconhecida, inacessível, como uma presença-ausência cuja carnalidade e espiritualidade a distinguem dos demais e ainda ressoam. Enquanto obras de Hilda radicalmente nos confrontam com a estranheza do ser e de seu mistério sagrado e profano, “Fôdo” cerca o mistério de mediadores, que tentarão processá-lo. Isto é o que fazem a acusação lida pela juíza e o próprio homem: a mediação para o estranhamento.
Cabe ainda dizer que a leitura da peça pouco favoreceu a apreensão da obra. A opção por deixar o público em relação frontal com a projeção do texto traz o risco de que o espectador se prefira leitor e torne-se independente, lendo a seu ritmo as palavras estampadas na parede. Isso transforma a voz dos atores em ruídos que se tencionam com o que se lê – e não parece ser esta, enfim, a intenção de uma leitura pública que investe em elementos visuais dispostos nas laterais ou ao fundo da plateia, onde, aliás, é mais difícil a visão. Essa configuração estabelece um conflito entre os atores e a projeção, que brigam pela atenção do espectador. Talvez uma maneira de abrandar esse cabo de forças fosse instruir os atores a um minimalismo corporal, de modo que somente suas vozes reverberassem. Contudo, o que se viu por parte de alguns foi descuido na leitura do texto, por vezes abandonado na metade da frase ou dito em sussurro inaudível, associado ao afã de chamar a atenção do público. Como consequência, distraía-se do que era lido. Não há problema em trabalhar a performatividade da leitura, como fez Marina Viana no encontro anterior sem prejuízo ao discurso – ao contrário, tornando-o mais palpável. O que está em questão é não sabotar o próprio texto em um contexto de leitura dramática, na qual ele é apresentado como foco.
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Desvios sutis de João e Maria
Raysner de Paula retoma a fábula de João e Maria para sugerir novos e amplos sentidos aos personagens infantis. Eles surgem desvencilhados da estrutura da história e dos acontecimentos estritos, como arquétipos de crianças apartadas de seus pais e confrontadas com o mistério da vida e da morte.
A ausência paterna e as memórias familiares ocupam o diálogo entre os dois irmãos, cujas falas foram lidas por Brenda Soares e Wiliam Ventura . Uma decisão ousada de colocar dois atores muito jovens em cena, mas que funcionou devido à clareza de intenções que ambos apresentaram na leitura de suas falas e no jogo de representação em que se colocam no lugar de seus pais, preenchendo, assim, a falta e a saudade.
Em vez da bruxa e da casa de doces, outras metáforas são criadas, dando conta de sobrepor distintas camadas, legíveis por adultos e crianças, que apontam para interpretações livres. A distância do pai, que poderia remeter também à morte, ao abandono ou a um tipo de personalidade fechada, torna-se física e é localizada do outro lado do rio, num lugar onde ele é capaz de falar com Nossa Senhora. A referência cristã substitui a obscurantista.
O autor permeia o diálogo entre irmãos de questionamentos sutis e ambíguos, ao mesmo tempo em que cria uma conversação leve, na qual despontam as implicâncias e o afeto entre eles. Desse modo, não subestima seu público, permitindo que ele se relacione em diferentes níveis de leitura com o texto. Exemplo é a ideia de engolir o mundo, que se desdobra na separação da passarinha e de seus filhotes, simbolizando a orfandade que paira como tema maior sobre os dois garotos. O jogo de imitar os pais, colocando as crianças em situação de adultos para entender como pensavam o pai e a mãe, também segue essa operação.
Marcada pela ingenuidade e pela lógica peculiar típicas dessa fase, a linguagem adota um modo de construção e expressões infantis, que em momentos se aproxima da prosa poética. Raysner cria um universo delicado, reforçado pelas inserções musicais, e aproveita a identificação do público com o imaginário conhecido de João e Maria para propor-lhe desvios insuspeitados.
*Texto originalmente publicado no site do Janela de Dramaturgia, em novembro de 2012.