Reflexões e expansões a partir dos espetáculos “O Jornal- The Rolling Stone”, “Cabaret Macchina” e “Grande Sertão: Veredas” apresentadas no Festival de Curitiba 2018
– por Soraya Martins –
Foto: Lina Sumizono/Festival de Curitiba
Dentro do meu exercício de ser crítica de teatro, venho sempre pontuando tanto o papel da crítica quanto da dramaturgia- aqui entendidas na sua pluralidade de textos, cenas, imagens, músicas, memória e esquecimento, sinestesias e signos – no que diz sobre a possibilidade da crítica e da(s) dramaturgia(s) serem espaços de reconfiguração para se pensar modos, também no plural, de ser negro e negra em cena. Modos que passam por pensar o corpo da negrura na primeira do singular, sem essencialismos e identidades redutoras. Modos de/em expansão.
Foi a minha primeira vez no Festival de Curitiba.
Desde quando era estudante do Teatro Universitário da UFMG, tinha o sonho de ter um coletivo e acontecer nesse festival, de ser um pouco Por Elise, mas tem-se o difícil caminho para o jardim e tem também – o que é bom – o não saber onde o mar termina. Aí a gente corre e não deixa a emoção tombar.
Foi minha primeira vez no Festival de Curitiba.
No sete de abril peito inflamado com palavras afogadas, caiu um abacate na minha cabeça. E eu senti, foi inevitável.
Foto: Lina Sumizono/Festival de Curitiba
E nesse abril O Jornal- The Rolling Stone, no Guarinha lotado, com cinco atores encenando o texto de Chris Urch (cinco atores – negrxs- na liberdade de serem atores e encenar o que quiserem) e depois os debates. A peça é a história de um amor proibido entre dois homens que, à semelhança das personagens da Tragédia Grega, não conseguem fugir de seus destinos. Problemas existenciais, dúvidas, fé, tradição, amor, ódio e intolerância e silêncios históricos – o silenciar de mulheres pretas- permeiam a peça, que traz para a cena uma história de começos, meios e fim (tudo bem redondinho e dentro de uma estrutura já clássica de teatro) e um trabalho de construção psicológica das personagens, que transborda e transborda e excessos… em algumas vozes e corpos.
Inspirado em fatos reais, O Jornal faz uma alusão ao periódico ugandense The Rolling Stone que publicou, em 2010, uma lista com 100 nomes de homossexuais e incitou seus leitores a enfocar os mencionados. É ao tensionar homofobia a partir de corpos negros que o espetáculo dirigido por Kiko Mascarenhas, com co-direção de Lázaro Ramos, usa o palco para modos plurais de se pensar negras e negros em cena. Coloca na boca dos atores questões e discursos que não só o racial (de extrema importância ser discutido por negrxs e, acima de tudo, não negrxs. Fanon já nos contou quem inventou o racismo!). No Jornal, os corpos da negrura discutem singularidades, fragilidades e amor. Dá-se a esses corpos, para além de uma leitura somente política deles, também necessária e urgente, a dimensão humana; fricciona as identidades lúdicas e redutoras que constantemente tem-se dxs negrxs; fabula-se sobre masculinidades, desejos e queres: a homofobia é vivida e discutida por negrxs, no lugar de não ter que representar a coletividade, mas as particularidades e a subjetividades da existência. Daí o lampejo. Daí a possibilidade de reconfigurar identidades, fissurar essencialismos. Daí a abertura para lugares outros na organização do sensível, estabelecendo outros discursos e a possibilidade mesma de elaboração de uma negro-perspectiva que potencialize o recontar das narrativas a partir de mãos, pés e humanidade(s) negra(s).
Foto de Humberto Araújo/Festival de Curitiba
Dos corpos luminescentes da negrura do O Jornal aos corpos, não menos políticos, do Cabaret Macchina, dxs artistas da Casa Selvática, que teceram o cabaré em conexão com a obra de Heiner Miller e o Brasil de 2018. Esse Brasil, de abril, de 2018, de homofobia, transfobia e racismos, de uma convulsão coletiva é bem marcado na pós-ópera da Selvática. Já os sinais luminosos invocados por Heiner Miller foram ofuscados pelas luzes dos refletores das ruas de Curitiba.
Cabaret Macchina, um grande cabaré de ironias e denúncias das geografias curitibanas e nacionais, das narrativas e das estruturas em colapso, investiga uma cena híbrida que mescla elementos das artes cênicas, artes performáticas e literárias, do clássico-canônico ao contemporâneo. Um metateatro também contemporâneo em que tudo é encenação, em que se pretende fazer uma revolução debochada, desconstruir paradigmas. A contemporaneidade, aliás, é tida como o tempo da desconstrução, do botar abaixo as estruturas, tempo das misturas, da não rigidez das fronteiras, que “atira a tudo e a todos no grande vácuo do desuso”. E o que vem depois? Desconstrução. E desconstrução. Descontrói-se tudo, mas não existe um construir de novo, e novo, por meio de outras referências, subjetividades, saberes e organizações? Como subverter as dicotomias? A palavra solta no tempo-espaço-humorístico do cabaré é o si mesmo da dramaturgia e de um exercício de uma nova possibilidade de/para mundo?
O cabaré da Selvática é composto por excessos – aqui é no sentido quantitativo e isso não é ruim- estilhaços, fraturas, cacos, ruídos de cenas independentes no todo do experimento. Esses estilhaços, de vidas e de existências e de escolhas estéticas, entram em total contradição com uma representação centrada, composta na perspectiva de um olhar único e de um princípio organizador, cuja progressão obedece às regras de um desdobramento em que as partes individuais engendram necessariamente as seguintes, coibindo os vazios e os começos sucessivos. No experimento, o fragmento induz à pluralidade, à multiplicação dos pontos de vista. Nesse cabaré, a fragmentação passa a ser o princípio estético, os vários fragmentos de cena não são metonímia do todo. É inútil pôr-se à procura de um quebra-cabeças. O que me parece mais potente, aqui, nas fatias de vidas performadas, é encontrar exatamente o que não chegou até a nós, o que ficou nas fendas ou o que talvez falte nesse excesso todo.
Foto de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba
E de novo a Travessia. Da rua do cabaré à rua do diabo… o diabo na rua no meio do redemoinho. No nada: as ruas e estradas de Curitiba me levaram a uma sessão dedicada ao Luís (o teatro tomou posição), que naquele sábado deixou peitos inflamados com palavras afogadas. Ruas frias, de graus, me levaram ao sertão contemporâneo da diretora Bia Lessa, ou melhor, ao sertão tecnológico. Sertão de Guimarães é tecnologia. Lugar de pensar as complexidades da existência, viver em relação. Ser-tão é pensamento como criação. Grande Sertão: veredas é uma adaptação do livro de Guimarães Rosa, que narra a saga do jagunço Riobaldo em sua travessia pelo sertão-mundo de dentro e o sertão- mundo de fora, um espetáculo-instalação com recursos que ampliam a dimensão sonora do público: cada espectador tem seu próprio fone de ouvido. Assim, cada palavra-poesia de Guimarães, cada vez que Diadorim virava a neblina de Riobaldo e as coisas aconteciam docemente de repente, travava-se um sussurro íntimo no ouvido do espectador.
Grande Sertão acontece dentro de uma pequena estrutura retangular de ferro, nesse espacinho cênico, o local e o global do sertão se juntam; o pouco que se tem de cenário é descontruído e construído, num movimento que sinaliza para a dimensão cíclica da existência; os elementos cênicos são constantemente ressignificados: um pedaço de madeira vira remo- que vira cavalo- que vira arma- que vira barco-travessia, que vira palavra-poesia acompanhada por uma intensa performance física dos dez atores que reconfiguram o sertão de Rosa. E o público vê e vive esse sertão alojado nessa estrutura retangular de dois andares. Eu vi o sertão de cima. Vi imagens de sertão sendo sugeridas e transformadas, (re)sugeridas e (re)transformadas, uma espécie de poética da relação em que está em jogo a capacidade de lidar com as imagens-sentidos e incorporar essas imagens ao próprio sentido. Uma poética de produção de imagens para o pensamento-criação. Tecnologia. Dramaturgia(s), aqui, como espaço de reconfiguração e elaboração das existências humanas em linguagem fabular e de recriação, partilha do sensível de ser-tão.