– por Bremmer Guimarães –
Crítica a partir do espetáculo “ENTRE – uma casa que se torna” apresentado no Memorial Minas Gerais Vale (Belo Horizonte/MG)
Fotos de Guto Muniz
Uma experiência de convívio a partir da obra da autora portuguesa Maria Gabriela Llansol. É o que propõe “ENTRE – uma casa que se torna”, espetáculo-instalação idealizado pela artista e pesquisadora Dora Bellavinha, que compartilha a cena com as atrizes-bailarinas Helena Carneiro, Olivia Zisman e Sara Marchezini. Além do convívio entre as performers em cena e o público, o conviver de diferentes linguagens artísticas: teatro, dança, música, artes visuais, literatura e performance. “ENTRE” não é um trabalho que pretende se definir. E é importante que o espectador, aqui também performer com a possibilidade de interferir ativamente no espetáculo, tenha a consciência disso. A montagem permite que cada apresentação seja de fato única. Não apenas de dia para dia, mas também de pessoa para pessoa, de olhar para olhar. Subjetividade que, se esmiuçada, está presente em toda experiência artística: a obra se completa na significação de cada indivíduo que a compartilha. Mas, neste caso, uma característica que se explicita e se faz motor para a construção e fruição do trabalho. O espaço cênico onde “ENTRE” se constitui é realmente uma casa. Não um imóvel já existente e ressignificado por uma ocupação artística, como muitas dramaturgias do espaço propõem fazer. Mas uma casa-instalação. Uma tela. Um cenário. Uma escultura. Uma obra de arte. Com diversos cômodos, paredes, móveis, objetos e, evidentemente, habitantes. Moradoras que não necessariamente fixam morada. Estão de passagem. Atravessando. Em situação. E, dessa mesma forma, o espectador também é provocado a performar. A estar em trânsito. É o olhar do público, aquilo que quer ver e o que consegue ver, os enquadramentos que são possíveis e os que são evocados, o que ouve e o que escapa, que compõem esse trabalho convivial. É interessante perceber que a casa de “ENTRE” e da obra de Maria Gabriela Llansol é uma metáfora para a construção de um mundo novo. Uma casa-experimento. Um espaço possível para uma nova existência, uma nova organização, uma nova linguagem. Daí a potência poético-política do projeto: “ENTRE” fala sobre as convenções sociais que estão impregnadas em nossos corpos, em nossas relações, nos bens materiais que nos cercam. Uma construção da linguagem. De linguagens. É possível construir novos signos, significados, novos sentidos para além dos que já estão estabelecidos e dados? A dimensão da palavra já pronta enquanto limitadora de um tempo presente e a sua implosão como libertação aparecem a todo instante na obra da Llansol. Como o texto do espetáculo diz: a casa é “um lugar de batalha”. Batalha de subjetividades. De percepções de mundo. Batalhas para que a desordem se instaure e uma outra possibilidade de mundo possa existir. Daí também a primeira inquietação do trabalho: se “ENTRE” reflete sobre tudo isso, por que nós, enquanto espectadores, não conseguimos nos desfazer das amarras do conceito teatral e ainda nos comportamos tão passivamente frente à obra? Não que o conforto não seja permitido. Não que o agir sobre e em conjunto tenha de se tornar regra frente à contemplação. Mas, num trabalho com tantas frestas e porosidades, por que ainda limitamos a nossa experiência ao simples sentar no chão e assistir? Porque não nos permitimos o risco? Por que nos ditamos uma regra que não foi avisada? O que há na experiência da cena que controle o espectador e diga silenciosamente que ele deve se portar apenas de uma única maneira durante um espetáculo? E que só poderá fazer diferente se tiver permissão direta, explícita para isso, ou seja, uma relação de poder em que, aparentemente, o artista está no controle. Será o medo? Medo de relacionar-se radicalmente? De conviver? “Não há medo, onde não há poder”, o texto do espetáculo nos dá pistas. E é interessante perceber como uma autora da metade do século passado levanta discussões tão contemporâneas por justamente questionar a raiz do que somos: outra vez, a linguagem.
Fotos de Guto Muniz
“ENTRE” não é um trabalho que traz questões identitárias para a cena, como se vê tão presente no teatro do nosso tempo. O trabalho não fala de machismo, racismo, homofobia, desigualdade social, mas fala do que antecede tudo isso: as relações humanas. “ENTRE” não está comprometido em elucidar os discursos de representatividade que nos atropelam a todo momento, mas em investigar o que configura todas essas representações. A contradição da linguagem está justamente aí: a violência é uma ficção. A vida é uma ficção. E é possível instaurar novas ficções dentro das que já são existentes. Estamos submetidos a um jogo em que os protagonistas são sempre os mesmos nas mesmas histórias. Denunciá-los e repetir suas tramas sob a nossa perspectiva pode parecer um caminho, e sobretudo não há julgamento sobre essa possibilidade, mas por que não investigar uma configuração outra da dimensão social pra além dessa que já está dada? Por que não voltar às origens, à linguagem, e tentar tatear expressões novas? A casa de Llansol quer revolução pela forma. Acredita numa outra forma, numa outra possibilidade de discurso, que não é o humano, o racional, o da linguagem universalizada. Não é à toa que o ser humano não está no centro da casa. A autora quer esmiuçar até mesmo as hierarquias e relações de poder entre humanos, outros animais, plantas, objetos. Todos estes seres constituem a dimensão terrestre. E mesmo a metafísica. Mas continuamos reproduzindo uma mesma lógica em que o “eu” (indivíduo), em que o “nós” (espécie humana), está no centro. Por que perdemos a dimensão sagrada da nossa natureza para constantemente nos naturalizarmos sob uma perspectiva racional? Evidentemente, é o que fez diferir a humanidade das outras espécies no mundo, mas será que essa diferença nos faz mesmo diferentes? Por que seguimos acreditando nisso e nessa invulnerabilidade humana? “Todos somos iguais perante a inexistência enigmática”, outro momento da dramaturgia nos atravessa. Inexistência enigmática que diariamente é reforçada como uma existência absoluta, suprema, divina. Mas que aqui ganha a dimensão da relação. Da casa como convívio. Deus está no entre nós, no limiar, não é possível ver outro deus que não esse. “Nessa casa não entra maldade, nessa casa só entra amor”. Cantos religiosos tradicionais são entoados pelas performers em cena. Viria a dúvida: não seria essa uma contradição a todo discurso escrito até aqui? Talvez. Mas nas contradições estão muitas das potências da arte. E em tempos em que o político, em que os discursos do cotidiano se proliferam cada vez mais sobre as obras artísticas, a arte parece perder a sua potência de estar em abertura, de assumir suas incompletudes, de não se comprometer com a instituição de uma verdade. A arte está sempre em resposta ao seu contexto histórico. Em diálogo. Mas não pode se tornar refém. Cativa da necessidade de afirmar uma realidade única. Comprometida em ser maior do que todos e tudo. Em não ter dúvidas. Perguntas. Somente afirmações. Não. É preciso respirar. Recomeçar. Em “ENTRE”, a única lei possível é a da impermanência, da metamorfose. E é cruel a contradição de um trabalho apresentado no Memorial Minas Gerais Vale trazer uma frase de Llansol, em que escrevia, há mais de 50 anos: “era um rio morto que já nunca será doce. Somos responsáveis pela lama tóxica que sufoca os peixes”. Inserção poética que também não deixa de ser lida como uma denúncia. Uma previsão de Llansol sobre um futuro devastador. Mas não estará justamente nesse paradoxo a sua poesia? A sua tentativa de confronto? É curioso que figurinos e objetos cênicos nos remetem a um tempo passado, antigo, ao mesmo tempo em que os discursos e seus conflitos pareçam tão atuais. Vivemos um tempo em que predomina o julgamento e o ditar das formas de resistência. Por que perdemos a utopia de tentar buscar outros modos? Outros procedimentos? Em determinado momento da apresentação do espetáculo, em que o público é convidado para uma “reunião na sala de estar”, uma sucessão de perguntas gera divagações e pensamentos: O que te atropela? O que te faz bem? Você atropela ou é atropelado? No que você acredita? Não precisamos ter todas essas respostas. Talvez tentar tateá-las seja mais efetivo do que realmente encontrá-las, dominá-las. O espaço edênico, que “ENTRE” suscita, está no tempo do quando. E, nesse quando, convivemos com quatro performers em busca de uma sintonia, de uma harmonia, e que por efetivamente buscarem, vivenciam essa relação. Não representam. Não querem representar. Criam imagens. Dançam a guerrilha. Relacionam-se com as paisagens da casa e com a trilha sonora. E tendo partilhado do trabalho em três apresentações, é bonito perceber como cada experiência foi radicalmente distinta e suscitou percepções em mim, sobre mim e sobre a obra, cada vez mais nova e em transformação. Vale dizer da presença de uma cachorra em cena, chamada Vida. Vida talvez simbolize o que justamente pela linguagem nos escapa. O que não damos conta de justificar. De responder. Conviver em “ENTRE – uma casa que se torna” é edificar aquilo que pode e deve desmoronar em nós e ao nosso redor. Dramaturgicamente, ao longo da apresentação, as paredes e muros da casa vão se abrindo. Sendo derrubadas. A casa se amplia para o planeta. Afinal, “pra forma humana só essa Terra existe. Mas há um outro mundo. Dentro deste”. Axé!
FICHA TÉCNICA:
Concepção e direção geral: Dora Bellavinha
Co-direção: Olívia Zisman
Performance: Dora Bellavinha, Helena Carneiro, Olivia Zisman, Sara Marchezini
Trilha sonora original: Manuel Andrade
Cenografia: Marcelo X e Dora Bellavinha
Assistente de cenografia: Izabel Marques
Cenotécnica: Ian Moura Dolabella, Cláudio Góis e Chiclete.
Figurino: Estúdio Ovelha
Designer de luz: Pâmella Rosa
Operação de luz: Pâmella Rosa e Camila Botelho
Operação de som: Bruno Lelis e Manuel Andrade
Produção executiva: New View Entretenimento e Comunicação.
Produção geral: Bruno Lelis e Dora Bellavinha