– Por Mário Rosa e Clóvis Domingos –
Crítica a partir do espetáculo Undercurrent – do nervo à unha, do Anticorpos – investigações em dança de Ouro Preto/MG.
O corpo tem sido questão central da filosofia e das artes contemporâneas já faz algum tempo. O que pode o corpo? A conhecida pergunta de Espinosa tem nos ajudado a investigar os modos de ação e de existência do sujeito moderno – sujeito esse mapeado, esquadrinhado, repleto de palavras, reiterado nas normas e instituído nos campos das subjetividades e da vida pública – assim como nos leva a pensar nas possibilidades de fissuras no corpo e nas relações que se abram para as multiplicidades que habitam as pessoas e o mundo em encontros imprevistos com forças que não cessam de nos cobrar outros jogos de pensar e de criar que investiguem a linguagem, reconheçam sua origem ficcional e sua tessitura na história. Jogos de pensar e criar que coloquem o corpo no centro da cena com as materialidades que o faz existência: tempo, memórias, imagens, carnalidades e contatos.
No interesse investigativo dessa matéria fina há quem se proponha sondar o que se encontra fora da molaridade constitutiva do sujeito voltando-se para zonas de virtualidades que reorientam questões das políticas dos corpos e dos afetos.
O que pode o corpo do esgotado? O que pode o corpo aberto para outras inscrições e narrativas? O que pode o corpo quando se fragiliza em sua organicidade eficiente e lucrativa? O que pode o corpo quando não se deixa fechar para as multiplicidades do que se pode experimentar ser? O que pode o corpo quando se permite vivenciar transversalidades e aberturas?
Muitas perguntas e tentativas de formulações de ideias surgem com o trabalho Undercurrent – do nervo à unha, do Grupo Anticorpos, apresentado em Belo Horizonte[1].
Nesse espetáculo que aproxima dança contemporânea, técnicas de contato improvisação e dança butô, percebemos intenções de ativações e deslocamentos de sentidos nas instaurações da presença dos corpos em variações, com atenção rigorosa às evocações de temporalidades e aos fluxos de energia emanados das relações e dos movimentos criados em cena.
Estes fluxos estão presentes num campo de composição que frequentemente expõe a materialidade do corpo e as forças em conflito que o habita, como na imagem inicial do espetáculo que apresenta um rosto radiografado que ri e canta. Neste caso, o referencial de uma organicidade do corpo captada na sua ossatura em raios-X é animado por algo que diz respeito à estranheza de um singular, ou melhor, ao estranho familiar que é apresentado como a dizer do que está sob a pele e que não pode ser esquadrinhado pelas formas científicas do saber. O que se reforça ali é um instigante princípio de exposição de forças que animam a vida no seu desassossego de errância, no seu incapturável do signo e é por aí que a proposta segue.
Segue numa conjugação de forças expressivas de corpos e imagens que nos trazem sensações do visível e do invisível em constituição de movimentos e formas que se avolumam e se metamorfoseiam, que se fragmentam e engendram o disforme, que se inserem no lusco-fusco e na sombra, que se manifestam na singularidade de estados de dissolução e presença, assim como inscrevem nos corpos isolados e em contato, figurações de matérias germinativas que rompem o contorno humano.
Nesse movimento, algo das forças de um agenciamento da terra é ativado expondo através dos corpos dos jovens dançarinos a coexistência de muitos tempos. O real e o virtual ali se desenham de um modo que nos causa estranheza, distância, curiosidade e atração. Tempos simultâneos, podemos dizer: do real registrado/capturado em imagens aos corpos inscritos no tempo de múltiplas memórias e devires. Isso é realizado de forma interessante pela operação das partituras coreográficas criadas em consonância com os recursos audiovisuais e a iluminação. O que se cria tem algo de multiplicação, fantasmagoria, povoamentos, embates e variações.
Que ronda e varia com os flashes: os corpos.
Que parece brotar da terra: um corpo.
Que faz da pele e musculatura a massa que se manipula a partir das forças que entram em contato: corpos.
Que duplica, que se esconde, que confunde, que evade… A utilização em cena de um tecido-tela acaba por instaurar um límen no corpo do espaço cênico, jogando entre o dentro e o fora, entre presença carnal e imagem projetada, luz e sombra, corpo vivo manifesto e matéria morta numa coreografia que opera como radiografia trêmula e imprecisa que mais do que revela e fixa, cria zonas de indistinção.
Desta experiência, do sob e sobre a pele irredutível aos ordenamentos normativos do mundo, há uma positividade de uma nova política. E aí, algo de anticorpo se apresenta como evidência de combate, pois as imagens radiografadas, ao mesmo tempo em que expõem os fluxos que habitam a carne, também apresentam forças que orientam, ordenam e violentam os órgãos e os corpos. E é, nesse aspecto, muito interessante o movimento de dança na projeção da imagem de uma mão em raios-X entre a captura e as vazantes dos corpos em luta. Um embate possível entre o biopoder, a necropolítica e modos de resistência que se afirmam pela experiência de vivência naquilo que se entrevê como exuberância dos corpos-sem-órgãos e como potência de uma vida. Como resistir numa era farmacopornográfica na qual vivemos, segundo Paul Preciado, ao se referir às intervenções (ou serão feridas?) provenientes dos discursos e procedimentos médicos, midiáticos e mercadológicos sob nossos corpos e existências?
E nessa vida que da forma humana se abre para as fissuras e dissoluções vemos também em cena algo que se aproxima daquilo que se insinua como um devir animal, presente em cena pela composição de forças no corpo e pelas imagens e sonoridades criadas. Novamente, o irredutível, a virtualidade, o germinativo integrado aos movimentos que sugerem uma articulação entre ritualidade pagã e a força recalcada das pulsões.
A maneira como esta experiência de dança nos chega afirma a política complexa das afecções nos seus movimentos, sinuosidades, bloqueios, silêncios e horizontes. Esse texto crítico mesmo, como uma sondagem do que resta e também do que nos escapa dessa experiência intensa com um espetáculo que mais se ancora no campo da pré-linguagem, nos convidando a habitar um entre-lugar entre sensação e discurso.
O “o que pode o corpo” retorna para pensarmos nas possibilidades de existências e nas inscrições desejadas ou impostas a esta matéria frágil, forte e mutante. Talvez como possibilidade de intuirmos que uma forma de humano encontra-se no ultrapassado do seu limite e que nos cabe, mais do que entender, estar de corpo naquilo que foge ao império da razão como se alimentássemos a urgência de um porvir que se associasse por novas formas e encontros, por abertura ao mistério das coisas, pela erótica de um devir mundo naquilo que nos faz existir: campo que se configura e desconfigura seguindo as sutis e complexas redes de articulações ecológicas.
Espetáculo assistido em 31 de maio de 2018 na Funarte MG.
Ficha técnica:
Dança: Daniela Mara, Danilo Felisberto, Diego Abegão, Lucas Rodrigues, Pan Ribeiro e Vinícius Amorim.
Luz: Daniele Viola e Laura Reis.
Direção: Éden Peretta.
Fotos: Biel Machado.
[1] Espetáculo esteve em cartaz na FUNARTE MG nos dias 24, 25, 26, 27 e 31 de maio e 01, 02 e 03 de junho.