– por Juliano Gomes (Revista Cinética) –
Crítica a partir da ação Você tem um minuto para ouvir a palavra?, realizada pelo Panorama Festival na MITsp.
Agir contra o isolamento histórico autoproduzido pelas instituições tradicionais das artes e do pensamento é talvez a ação política mais urgente hoje – apesar de não ser uma novidade. A reprodução da estrutura elitista que forma e formou a sociedade brasileira é uma realidade histórica para este circuito do qual a MITsp faz parte (e do qual todos os grandes eventos e instituições e profissionais também fazem, e onde eu me situo). O beco sem saída provocado por esse “centrismo” (assim como “eurocentrismo”, “antropocentrismo”, trata-se de processos de atrofia do horizonte de possibilidades) encontra hoje uma nitidez vibrante. Fazer ações no espaço público me parece um tipo de desejo muito interessante e importante nesse sentido. Intensificar este tipo de desejo de destinar-se para fora é um imperativo ético para arte poder cumprir seu papel devido. Mas o que é este fora?
Que ação sobre a rua isso pode gerar? “Teóricos, artistas, estudantes, entre outros, lêem textos sobre liberdade de expressão, arte e política” diz a sinopse do trabalho. Sinto que, em sua maioria, teóricos, artistas, estudantes, não são estudiosos da rua como meio, como superfície expressiva – muito pelo contrário. A rua não é uma folha em branco, nem uma tela. Nesse sentido, a disposição espacial que se desenhou produziu um efeito de palco italiano na calçada (leitor de frente a um conjunto de cadeiras com um vão no meio). Inúmeras vezes, passantes desviaram do vão – a ação criou esse espaço a ser desviado. À título de experiência, talvez uma configuração sem cadeiras, mais pulverizada, e, principalmente voltada para a rua, possa produzir resultados distintos. Estar “de costas para a rua” produz no mínimo uma imagem demasiado simbólica.
O título da ação alude a técnicas expressivas usadas por ações de religiosos em espaços públicos onde estes desejam espalhar as palavras de sua crença e quem sabe trazer novas pessoas para sua religião. Na medida em que grupos religiosos têm sido muito bem-sucedidos em sua comunicação mais ampla com a população brasileira e sua incidência sobre o jogo político e econômico, me parece louvável que as instituições tradicionais de arte passem a “estudar” as várias faces desse fenômeno. Dobrar técnicas de ação para outros fins faz parte tanto da história da arte, quanto da política. Se essa ação sinalizar um início desse estudo dentro de um evento como a MITsp, trata-se de um horizonte extremamente fértil, que dificilmente não desaguará em descobertas, e a tentativa e erro (agir e avaliar verdadeiramente) são dados básicos deste processo. O gesto de emular uma certa retórica, expresso desde o título do trabalho, se não for somente um efeito irônico de recusa, mas sim de interesse real no fenômeno, sinaliza uma perspectiva muito interessante vinda de atores que historicamente rejeitam as táticas expressivas de outras classes sociais.
Tomando esse referente como parâmetro, alguns fatores me chamam atenção. A maior parte das pessoas não só leu sentada, mas em um tom de voz, e ritmo de leitura muito a afeito a ambientes sem ruído – como que transferindo uma performance de interiores para o exterior. O resultado me pareceu que mesmo as pessoas já “convertidas” (participantes do evento e de circuitos próximos) ficavam boa parte olhando seus celulares, minimizando um ambiente expressivo de alteração mútua. Minha hipótese é que o corpo que performa, a voz, e a duração dos textos (no início do que presenciei, a maiorias das leituras durou mais que quinze minutos) é um campo amplo de experimentação. E se estamos num festival de teatro, me parece que temos repertório suficiente para pensar expressivamente estratégias de ampliação desta intervenção. Provavelmente, profissionais que direcionam sua pesquisa para esse meio podem propor táticas de ação num meio ruidoso. As pessoas que fazem este tipo de trabalho com material religioso realizam um enorme investimento no tom de voz e na prosódia, e num corpo que se aproxima de outros, que aborda. O verbo abordar me parece uma palavra útil nesta empreitada.
Um limite da emulação talvez seja este que faz de quem fala portador de uma mensagem de iluminação (como o belíssimo texto de Amos Oz sobre o fanatismo, lido na ação, aponta), que sublinha e inventa a diferença entre mestres e aprendizes. Essa postura, cuja ambiguidade o trabalho encara, é típica e forma uma posição dominante de uma grande interseção entre instituições de arte, universidade, e o que se convém – não por acaso – a se autodenominar intelectualidade. O limiar entre uma ideia de saber como repetição ou como exercício de autonomia se coloca como o ponto de tensão para esta ação. A observação empírica me passou também a sensação de espelhamento, tanto pela forma espacial da ação, quanto pela semelhança de quem vi assistir e falar (eu mesmo fiz o circuito entre palco e plateia). Como afirmar uma discursividade, como propor um campo conceitual sem produzir servidão ou sem esperar espelhamento? Como criar vínculos sem produzir excesso de homogeneidade? Como não ser agente normatizador?
Onde estão os limites do que não se poderia dizer naqueles microfones? Ouvi Oswald de Andrade, Eliane Brum, Wagner Schwartz, falei Glauber Rocha, ouvi Milan Kundera, Valère Novarina, Rogério Sganzerla, Comitê Invisível, e o único que nunca tinha ouvido falar foi uma autora cujo sobrenome escrito no quadro era “Obsessiva”(o ruído da rua e da memória me furtaram o resto) – que trouxe o tema racial como um elemento textual para ação, porque até então as pessoas negras muito mais passavam do que permaneciam no espaço nuclear da ação. A sensação geral que predominou sobre os textos lidos que pude ouvir, assim como o tom de leitura, era afinal de um certo uníssono. Toda ação se articula entre um potencial de divergência e outro de convergência, entretanto, talvez seja interessante, em próximos desdobramentos, observar possibilidades que possam incidir sobre produções de homogeneidade que talvez não sejam primordiais para a potência da ação (seja de corpos, de modos de falar, gramáticas, enfim).
A arte é este animal cuja vida se apoia instavelmente entre o conhecido e o desconhecido, que exerce e inventa a superfície comum entre um e outro. Desnublar este desconhecido em direção à ampliação de repertório por uma disposição afeita a autoimplodir os elitismos históricos, é se embrenhar em outros repertórios performáticos como esse que esta ação coloca como referência. Durante o trabalho, um ativista de direita atravessou o palco invisível, distribuiu panfletos a favor da volta do voto em papel. Ele reconheceu onde estava, se relacionou, se viu em minoria, e soube atuar em um meio potencialmente hostil a ele. Me parece haver no mínimo uma interrogação a ser feita sobre táticas performativas. Há muito a aprender com todo esse som ao redor. Na esquina ao lado, centenas de jovens se reuniam cultuando pop coreano. Uma grande roda de dança, música, os unia. Não se trata de espelhamento, mas ali se produziu uma experiência que me parece relevante neste meio onde a ação voltada à MITsp também se deu. Fui lá observar, e vi uma adolescente negra, gorda, dançando sozinha na roda, uma canção popular contemporânea, e sendo aplaudida em seguida. Talvez não haja nada que a ação que é objeto deste texto possa aprender ali, mas talvez haja.
O que é então este fora? Ele talvez seja justamente o que se descobrirá empiricamente, em tentativa e erro, assumindo fracassos, se desvencilhando de cegueiras “centristas” e afinando as miras, mas voltando-se radicalmente ao que não forma uma figura de linguagem, muito frequente nos ambientes onde tenho frequentado, chamada “nós”. A experiência colonial, reversamente produz uma reserva abundante de repertórios ignorados por herdeiros e afins, em geral marcados pela palavra “popular” (do K-pop ao funk, do cosplay ao terreiro de umbanda, do vídeo viral ao tecnobrega). Se embrenhar verdadeiramente no que não se conhece, ou mesmo no que se despreza, e tentar entender suas formas e formações, testar ferramentas críticas em repertórios que tradicionalmente não estão “à altura delas”, me parece um dos caminhos mais férteis de construção de um porvir distinto. Que Você Tem Um Minuto Para Ouvir A Palavra? possa ser um embrião neste sentido é sem dúvida um dado animador. Quem sabe um braço forte do evento com este tipo de desejo centrífugo em edições futuras?