por Luciana Romagnolli
“Entre Nebulosas e Girassóis”. |
Por mais distintos que sejam em seus caminhos éticos e estéticos, os dois espetáculos que estrearam dentro da programação do Verão Arte Contemporânea neste início de ano em Belo Horizonte – “Entre Nebulosas e Girassóis” e “Popwitch (Bata-me)” – mantêm no horizonte o ideário comum do amor romântico, monogâmico, compartilhado ao longo de toda vida por parceiros de quem se idealiza também a beleza física, o caráter nobre, os sentimentos sublimes e a pureza de conduta (sobretudo da mulher, virginal, cuja sexualidade é confinada), numa associação com os valores morais da cristandade.
“Entre Nebulosas e Girassois”. |
Esse é um ideal que o grupo Teatro Adulto resgata em “Entre Nebulosas e Girassóis” do romantismo aos modos do Werther de Goethe (a propósito, inspiração de seu espetáculo anterior, “A Última Canção de Amor deste Pequeno Universo”). E que o diretor Diego Bagagal herda das fábulas infantis de princesas e dos contos de fadas (como já fazia em seu anterior “Poplove”) para “Popwitch”. A distinção maior entre essas criações está no posicionamento que adotam.
A questão a ser colocada como provocação primeira aos dois trabalhos é: o que perpetua essa visão do amor tantos anos após a revolução sexual, para dizer o mínimo? Quando os questionamentos feministas e gays já desestabilizaram os fundamentos do patriarcado e a posição central e absoluta do homem heterossexual como o padrão saudável a ser seguido? Quando o machismo e o controle sexual sobre as mulheres vêm sendo desconstruídos em favor de novos valores afetivos e sexuais? Em suma, após termos entrado em um processo de transformação da intimidade, como o define o sociólogo Anthony Giddens justamente no livro “A Transformação da Intimidade”?
“Entre Nebulosas e Girassóis” (do qual, aviso, assisti apenas ao ensaio geral e, portanto, não tecerei comentários sobre a encenação por ora) sustenta-se na idealização romântica do outro. O espetáculo do grupo Teatro Adulto coloca em cena a figura de um homem maduro e ensimesmado em seu pessimismo, o que o impede de se aproximar da jovem por quem se sente atraído. Sua estratégia, frente à presumida incapacidade de ação no mundo real, é projetá-la em um sonho no qual ele aparece mais jovem e belo, e ela, com a perfeição frágil e asséptica de uma bailarina de caixinha de música.
Somente nesse mundo onírico eles podem viver o amor. Ainda assim, trata-se de um amor pudico e marcado pela ingenuidade, aferrado àquele ideal sublime de conduta: um amor a ser vivido debaixo de uma chuva colorida e que será corrompido à medida que os personagens sonhados adquirirem independência e consumarem sexualmente a paixão. Essa negação do real – e da carne – praticada pelo protagonista comporta um traço de anacronismo difícil de se conciliar com o ethos adulto contemporâneo.
“Popwitch (Bata-me”). Foto de Guto Muniz. |
“Popwitch (Bata-me)”, por sua vez, já se alinha às libertárias reflexões sobre gênero que desestabilizam justamente o padrão heteronormativo. Na pele de uma bruxa-trans-brasileira, o diretor e ator Diego Bagagal cria uma comédia irreverente e sarcástica, que mira contra relações de poder cristalizadas entre os sexos – e atinge, como efeito paralelo indissociável do modo como essa ética se construiu, essas mesmas relações no contexto político de dominação entre Europa e Brasil.
O inquietante é pensar por que o humor crítico de Bagagal ainda se sustenta sobre ilusões românticas das mais acríticas, como se muito pouco se tivesse avançado socialmente e sexualmente para além das expectativas fabulescas. Este é um paradoxo em sua obra, já delineado em “Poplove” e acentuado em “Bata-me” à medida que o espetáculo apresenta uma encenação mais rigorosa e sedutora que a do anterior – sobretudo pelas performances de Rosa Antuña como a princesa-bailarina (personagem análoga à de “Entre Nebulosas e Girassóis”) e do próprio diretor como a transexual-protagonista.
“Popwitch (Bata-me”). |
As fórmulas do príncipe encantado e da mulher-princesa já não estariam por demais gastas na cultura pop ocidental, onde proliferam modos de desconstrução desse imaginário? Hollywood não sabe mais qual subversão infligir às personagens de contos de fadas para que guardem ainda algum atrativo comercial; nem resta novidade em ensaios fotográficos sensuais e/ou sádicos com brancas de neves e Cinderelas distorcidas. O cansaço em torno desses temas se deve à sensação de que já foram revirados, desconstruídos e criticados, de modo que não há centelha nova que os faça reacender. Aí se encontra o limite que “Bata-me” parece se autoimpor. Ainda que avance na visão libertária de sexo e gênero, ao zombar do imaginário principesco continua atado aos mesmos velhos paradigmas e padrões obsoletos.
Parece inevitável, tanto pela proximidade temática quanto temporal de suas estreias, remeter “Bata-me” ao filme “Doce Amianto” (leia crítica de Marcelo Miranda aqui), de Guto Parente e Uirá dos Reis, apresentado na Mostra de Cinema de Tiradentes em janeiro. Também o longa-metragem tem como protagonista uma transexual, sem que essa condição se sobreponha à sua identidade como mulher e aos seus sonhos românticos. Talvez a maior diferença esteja no modo como a própria Amianto se relaciona com suas fantasias românticas: nunca sucumbe acriticamente a elas, debate-se, recusa-as, numa obra que adere à sensibilidade da protagonista sem repetir indiscriminadamente padrões de conduta.