— por Elisa Belém —
Crítica a partir do espetáculo “Quartier Libres”, da dançarina Nadia Beugré (Costa do Marfim).
Como superar o medo ou como conviver com ele. Essa frase veio à minha mente enquanto assistia ao trabalho Quartier Libres[1], solo da dançarina Nadia Beugré, natural da Costa do Marfim. O espetáculo integrou a programação da Mostra FranceDanse Brasil, do Institut Francais, que, desde 2007, é apresentada em todos os continentes. A programação gira em torno da dança contemporânea francesa trazendo espetáculos, oficinas e seminários. A edição deste ano conta com 16 companhias que se apresentam em Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, João Pessoa, Londrina, Natal, Paulínia, Petrópolis, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
A resenha disponibilizada pela mostra informa: “Nesta performance, Nadia Beugré deseja questionar os espaços que nos são proibidos, perguntar quais são eles e o que fazemos com eles. Quartiers Libres explora e revela esses espaços tabus onde nos impõem a reclusão, os espaços proibidos nos quais decidimos entrar assim mesmo: espaços de expressão, de submissão, de revelação. Uma busca violenta e vã de liberdade se desencadeia, luta em que o abandono não é uma opção. (…) Numa luta contra um mundo que busca enterrá-la, num universo sonoro ao mesmo tempo dominador e acolhedor, seu corpo e seus resíduos se tornam por fim uma coisa só: eles se atravessam, se confundem, se absorvem[2].”
Ao chegar ao teatro, nós, espectadores, fomos informados que deveríamos nos dirigir ao palco, aonde aconteceria o espetáculo. Poderíamos sentar aonde desejássemos ou mesmo nos deslocar durante o evento. Havia três plataformas, uma cortina de garrafas de plástico e bastante espaço vazio. Logo, entrou uma dançarina negra com um microfone na mão e seu longo fio enrolado no pescoço. A performer se dirigiu a um ou dois espectadores pedindo que cantassem repetindo suas palavras que não correspondiam à música tocada em playback. Descrever uma performance que nos transporta para os ditos “espaços proibidos” aos quais a resenha se refere, torna-se aos poucos uma tarefa difícil. Como escrever uma resenha crítica sobre uma dança que é puro deslocamento?
Como superar o medo ou como conviver com ele? Posso desdobrar o pensamento em novas questões – como conviver com as forças que temos dentro de nós? O que vê em nós o olhar do Outro? E se, na verdade, nos conhecermos muito pouco? E se nosso corpo for o nosso testemunho? E se cantarmos canções que não seguem a melodia com um fio longo de microfone envolto ao pescoço? E se amarrarmos nosso corpo com o fio do microfone? E se uma jovem da plateia, visivelmente emocionada, retirar cada parte do fio e nos libertar? E se a jovem estiver libertando a si mesma? E se arrancarmos o vestido como se fosse uma segunda pele? E se dançarmos marcando/desmarcando nosso corpo semi-nu contra a parede?
E se convidarmos alguém da plateia para abraçar uma cortina de garrafas de plástico que pendem do teto? E se nos jogarmos contra as garrafas e o chão? E se vestirmos uma Roupa-Corpo-Roupa de garrafas de plástico transparentes? E se nos movimentarmos com essa nova Roupa-Corpo-Roupa? E se evocarmos Lygia Clark e Hélio Oiticica sem talvez nem os conhecer? E se engolirmos um saco plástico? E se expurgarmos todos os atos de submissão que sofremos ou sofreram antes de nós? E se precisarmos do suporte da mão de alguém para descer os degraus vestidos numa Roupa-Corpo-Roupa que nos confere um novo equilíbrio/desequilíbrio?
E se dançar for muito fácil? E se dançar for muito difícil? E se for preciso coragem? E se evocarmos os mortos? E se cairmos para trás vestindo uma Roupa-Corpo-Roupa? E se nosso corpo for o corpo de muitos? E de ninguém? E de alguém bem forte? E se hoje, somente hoje, escrevermos com nossa pele no espaço? E se a escola não nos ensinou nada? E se atuar for um ato de crueldade? E se ainda assim a cidade amanhecer a mesma? E se não percorrermos nossos próprios desvãos? E se vivermos sem termos realmente vivido? E se continuarmos com medo? Ainda assim, permaneceremos lúcidos?
As companhias e coreógrafos : Jérôme Bel, Nadia Beugré, françois Chaignaud et Cecilia Bengolea (Cia Vlovajob Pru), Herman Diephuis, Emmanuelle Huynh, Fabrice Lambert (Cia L’Expérience Harmaat) , Latifa Laâbissi, Thomas Lebrun, Samuel Lefeuvre et Raphaëlle Latini (Grupo Entorse), Maguy Marin, Mourad Merzouki (Cia Käfig), Alain Michard, Frank Micheletti (Cia Kubilaï Khan Investigations), Fabrice Ramalingom, Christian Rizzo, David Wampach.
As cidades : Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, João Pessoa, Londrina, Natal, Paulínia, Petrópolis, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo
[1] Espetáculo apresentado no Grande Teatro do Sesc Palladium, nos dias 26 e 27 de agosto de 2016, em Belo Horizonte (MG).
[2] Disponível em: http://www.ambafrance-br.org/Nadia-Beugre-2988. Acesso em: 27 ag. 2016.