— por Julia Guimarães —
Crítica do espetáculo “Rosa Choque”, do coletivo Os Conectores (Belo Horizonte/MG).
Logo que o público adentra o teatro, duas filas dividem os espectadores por gênero. Em duas arquibancadas, dispostas frente a frente, homens sentam-se de um lado, mulheres sentam-se de outro. Na primeira fileira de cada arquibancada, a atriz Cris Moreira e o ator Guilherme Théo estão ali, sentados e nus. Algum tempo depois, vestem roupas – azuis e rosas. E começam a jogar com papéis historicamente definidos do homem e da mulher.
A cena que abre o espetáculo “Rosa Choque”, do coletivo Os Conectores (BH/MG), com direção de Cida Falabella – e que integrou recentemente a programação do Verão Arte Contemporânea – antevê alguns caminhos possíveis para sua reflexão em diálogo com desdobramentos do feminismo no último ano, especialmente no Brasil.
Dentro de um primeiro vetor, que parece ser o eixo central do trabalho, estaria a ideia de expor os lugares que a linguagem, a tradição e a história destinam aos papéis de homem/mulher, e construir distintas apostas cênicas para desnaturalizá-los.
Vinculado a esse, há um diálogo com o espectador, no qual o convite a refletir sobre seus próprios papéis surge de maneira espacial, pela divisão das arquibancadas. E, ainda, a presença dos atores nus sinaliza uma vivência que passa pelo corpo e não será ignorada no decorrer da apresentação.
Junto a estas, é possível acrescentar outras questões de fundo: como o teatro é capaz de lidar com um tema reiteradamente debatido ao longo dos últimos séculos e que, além disso, no último ano, tem acumulado uma infinidade de novos significados? Como a linguagem cênica pode manter-se porosa a tais renovações constantes? E quais seriam estratégias potentes para dialogar com um assunto cuja complexidade é sempre um desafio às representações?
Logo nas primeiras cenas, a desnaturalização dos gêneros surge pelo viés da linguagem. Um exercício trivial – ler os verbetes de ‘homem’ e ‘mulher’ do Dicionário Michaelis Online 2015 – expõe depreciações surpreendentes, dada a “objetividade” que um dicionário poderia pressupor. Definições do tipo “Mulher: Pessoa adulta do sexo feminino; rabo de saia, racha, rachada” já indicam a capilaridade com que a opressão de gênero está introjetada na nossa cultura.
De forma semelhante, diante de um recurso de luz que projeta o desenho da gestação de um bebê no chão do palco, os atores intercalam frases-feitas que revelam a construção de papéis implícita na educação dos filhos.
Se as entrelinhas de frases como “Deixa ele pelado”/“Bota um vestidinho nela” revelam a repressão do corpo feminino, em outras como “Um grande homem”/“Uma boa mãe”, evidencia-se uma redução do papel da mulher ao da maternidade.
A desconstrução é também operada pela inversão de papéis, na cena em que um homem chega a uma delegacia para prestar queixa por ter sido estuprado por uma mulher. A delegada que o recebe se presta a condutas típicas verificadas nesse tipo de ambiente: questiona o fato de um ‘homem’ andar sozinho na rua, de ter chegado à delegacia desacompanhado de sua ‘esposa’ e insinua que sua roupa justa seja um convite à violência e ao assédio, culpabilizando-o pelo crime sofrido.
O nonsense gerado pela inversão de papéis – já que a vítima, no caso, é um homem – colabora para acentuar sua desnaturalização. No entanto, como os personagens, a cada situação, mais reforçam que subvertem os lugares-comuns de seus papéis, passada a estranheza inicial gerada pela troca, a proposta se torna previsível – inclusive quando os papéis surgem destrocados.
Além disso, a considerar a complexidade que o tópico feminista conquistou nas redes sociais – após disseminarem vídeos, desenhos e montagens com revistas femininas criados sob lógica semelhante de inversão/desconstrução de papéis – o recurso em “Rosa Choque” opera um estranhamento menor do que quando o trabalho foi apresentado pela primeira vez, em 2014, no formato de cena curta, dentro do projeto Cena-Espetáculo do Galpão Cine Horto.
Acrescenta-se ainda a impressão de um tratamento dos personagens nesta cena que confere uma ambiguidade pouco esclarecedora sobre qual estratégia crítica estaria colocada sobre a situação.
Isso porque, por vezes, há uma ironia pela qual os personagens parecem tratados como vetores de um riso crítico distanciado. Já em outros momentos, a crueza de um realismo cotidiano – por exemplo, na descrição do ato em si do estupro – ainda que sob o filtro da inversão, sugere, ao revés, uma crítica da violência pelo choque, por uma narrativa traumática. E o efeito de choque, que costuma atingir o espectador muito mais por uma via sensorial, pressupõe normalmente a eliminação da distância para funcionar, o que não ocorre. Com isso, parece que o diálogo entre os personagens e o público nesta cena fica no meio do caminho entre uma construção e outra, o que desfavorece seu potencial crítico.
A desnaturalização dos gêneros alcança outros desdobramentos no decorrer do espetáculo. Numa cena que critica e denuncia o machismo através de uma imagem paradoxal, o personagem de Guilherme Théo, um noivo abandonado no altar, surge cantalorando a letra romântica, supostamente despretensiosa, de uma canção de Vinícius de Moraes, enquanto arrasta o corpo de um cadáver.
Ao sobrepor a canção – que, entre outras coisas, reitera a noção do amor masculino como sinônimo de posse sobre a mulher – com a frieza do cadáver ensacado da noiva, revela-se uma violência potencial. Uma violência que surge em diálogo com construções idealizadas do feminino e do amor ‘romântico’, inclusive em lugares pouco evidentes, como num repertório da Bossa Nova, tão identificada à identidade da cultura brasileira.
Mas é, sobretudo, quando o vetor da desnaturalização alia-se à realidade do próprio teatro que a discussão parece surgir mais colada ao feminismo atual. E nessa proximidade, a valorização da experiência e do lugar de fala aparece como construção de linguagem privilegiada, justamente porque estabelece um elo entre representação e ação.
Tais aspectos são visíveis, por exemplo, na relação com o espectador, citada no início deste texto. Se, no começo do espetáculo, o público é “impostamente” posicionado em uma das arquibancadas destinadas à separação por gênero, em outra passagem sua posição é questionada. Isso acontece quando a atriz Cris Moreira pergunta aos espectadores se eles desejariam mudar de arquibancada – já que “essa divisão (…) não foi a gente que inventou”.
Ainda que seja um recurso simples, o convite aberto a questionar os próprios papéis a partir de um deslocamento físico – e diante de outros espectadores – sugere uma camada a mais à proposta da desnaturalização. Nesse caso, parece ser o fato do convite irromper a ficção e trazer o espectador para a sua própria experiência o fator que potencializa outras camadas de entendimento das questões tratadas, surgidas de uma reflexão-em-ação.
Também da ordem da experiência são os momentos em que os atores se dirigem ao público em primeira pessoa, numa perspectiva testemunhal sobre o tema abordado. Nesse contexto, seus lugares da fala acentuam questões sobre violência e privilégio que existe por trás da “naturalização” dos papéis.
Nesse sentido, o depoimento de Cris Moreira é delicado e difícil, pois trata-se de uma revelação pública de abusos sofridos na adolescência. E tanto no ato corajoso de se expor junto à plateia – repetido a cada apresentação – quanto na reflexão que o sucede, surge um diálogo com o momento de denúncia/compartilhamento de experiência que ocorreu coletivamente no espaço das redes sociais, em 2015, através da campanha #meuprimeiroabuso.
Não parece ser por acaso que a versão mais recente do espetáculo, apresentada no Verão Arte Contemporânea, incorpora depoimentos publicados nessas redes. O recurso surge aliado à prática, já anteriormente presente, de ler notícias de jornais sobre violência contra a mulher. Tal estratégia poderia ser entendida como uma atualização temática performativa que também aparece em outros trabalhos da diretora Cida Falabella, como “Esta Noite Mãe Coragem” e é fértil para aproximar a discussão ao tempo característico do teatro: o presente.
Já o depoimento de Guilherme Théo, que encerra o espetáculo, expõe a complexidade da questão em pelo menos dois aspectos. Primeiro, por vir de um homem que inverte a dinâmica das denúncias e questiona, em um diálogo diretamente dirigido aos espectadores, seus privilégios cotidianos vinculados ao gênero. Segundo, porque identifica um machismo mais sutil, não necessariamente transmitido por outro homem, mas presente nas entrelinhas de sua relação com a própria mãe.
“É estranho ser machista sem perceber. Mas eu sou. E não tinha dado conta disso”, diz o ator num determinado momento. A imagem que parece dialogar com a frase de Théo é o próprio ato de queimar uma cueca em cena – em referência à histórica queima de sutiãs, icônica do feminismo no século XX.
Nela, surge uma percepção, muito atual, que talvez não estivesse tão presente nas ondas feministas anteriores: para se combater o machismo, é necessário tanto que a causa diga respeito também aos homens, como também ocorra em ação, numa autorreflexão diária que seja cada vez mais performativa e micropolítica, não apenas teórica e discursiva.
E é por isso que o teatro, em seu incessante tensionamento entre representação e ação, merece ser um lugar privilegiado para uma reflexão-em-convívio, que busque dar conta, a cada novo encontro com o público, de um tratamento cênico condizente com o passado e o presente do feminismo, à altura de sua complexidade.
Ficha técnica:
Concepção e atuação: Cris Moreira e Guilherme Théo
Direção: Cida Falabella
Dramaturgia: Assis Benevenuto e Marcos Coletta
Colaboração artística: Rogério Araújo
Criação audiovisual: André Veloso
Iluminação: Cristiano Araújo
Olá, sou Priscila e curso jornalismo. Assisti ao espetáculo na noite de ontem no teatro do Sesc e a obra mexeu muito comigo, não apenas por eu ser mulher na minha intimidade, mas por ser uma cidadã do gênero feminino, o que implica questões coletivas e não somente meus dilemas pessoais. Gostei muito desta análise, pois me elucidou ainda mais reflexões, só senti falta de comentar a sutileza da dramaturgia e de como o texto consegue agregar tantos contrastes.