Julia Guimarães*
Um ator, uma atriz e um livro. Estas são as únicas presenças que ocupam a cena no espetáculo “Antes da Chuva”, da Cia. Cortejo, de Três Rios (RJ). Após realizar temporadas em diversas cidades brasileiras e colher elogios do público e da crítica, o espetáculo retornou à sua terra de origem para apresentar-se na programação do OFF Rio Multifestival de Teatro, que aconteceu entre os dias 9 e 16 de novembro.
A escolha do livro como único objeto da encenação não parece ser aleatória. Além de dialogar com a trama em si, diz respeito também à própria trajetória do grupo, que elegeu a linguagem narrativa como território a ser investigado, seja na atuação, seja na direção ou na dramaturgia.
Assim, o espetáculo “Antes da Chuva” – escrito por Rodrigo Portella e dirigido por ele em parceria com Léo Marvet – faz o espectador acompanhar a história de Ana e Aramis como quem lê um livro. O imaginário de umidade e calor de algum povoado no Norte do Brasil surge em cena pelas palavras e ações dos personagens, que rapidamente passam a relacionar-se amorosamente.
Ela, alguns anos mais velha que ele, está decidida a sair do vilarejo onde moram para arriscar-se pelo mundo. Ele, espécie de antítese dela, é medroso e obediente, planeja casar na igreja e manter-se no povoado.
Em diálogo com outro espetáculo que se apresentou no OFF Rio, “Cucaracha”, também aqui é o signo das alteridades que inicialmente ergue a relação dos dois. Mas, ao contrário da montagem da Cia. Independente, em “Antes da Chuva” as diferenças servem mais para anular o outro do que para complementá-lo.
Dessa forma, o que se revela na história de amor entre Ana e Aramis talvez seja o contrário de um suposto altruísmo comum às narrativas românticas. Nas entrelinhas de desejos antagônicos surge uma espécie de egoísmo, no qual o outro só interessa como projeção dos desejos de cada um.
O curioso dessa ruptura estabelecida pelo espetáculo com o paradigma amoroso é que ela cria um interessante desarranjo ao espectador, que esperou – até mesmo pela sinopse do ou pelas fotos do espetáculo – encontrar no palco uma história de amor coerente ao imaginário romântico ocidental.
Nessa desconstrução, há certa opacidade entre os atos e os desejos dos personagens que não se resolve nem mesmo quando o espetáculo chega ao fim. Um dos elementos que ajuda a construir essa dimensão de complexidade é a própria dramaturgia, que joga com tempos verbais distintos para mostrar o quanto o amor, as relações e, em última instância, a própria realidade são construções feitas e desfeitas a cada instante, cambiáveis de acordo com a perspectiva de cada um.
Nesse contexto, uma estratégia interessante ocorre quando os personagens-narradores criados por Luan Vieira e Bruna Portella “roubam” a fala do outro, a fim de imprimir seu ponto de vista sobre a narrativa de seu interlocutor e modificar, assim, os rumos daquela história.
Não por acaso, no debate ocorrido após a apresentação no OFF Rio Multifestival de Teatro, na última quinta-feira (14), os espectadores apresentaram entendimentos bem distintos dos demais sobre o espetáculo, o que ocorreu até mesmo entre os próprios integrantes da Cia Cortejo.
Isso só é possível porque a montagem opta por não fechar os sentidos em torno desses personagens, recurso que novamente lembra mais a linguagem literária que a teatral. E é justamente através dessa concepção dramatúrgica que cada espectador poderá completar a os significados da história a partir de um vínculo estreito com aquilo que entende ou enxerga como amor.
*A jornalista viajou a convite da produção do OFF Rio Multifestival de Teatro de Três Rios.