— por Luciana Romagnolli —
Para ingressar na última noite do 16º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, um caminho possível é refletir a partir dos lugares de fala, algo que Michel Foucault definiu como o lugar que o sujeito ocupa e que lhe confere as condições e a autorização para falar o que (e como) fala. No contexto dos movimentos sociais, esta ideia ganha relevância diante de discussões acerca de como grupos historicamente silenciados podem tomar para si os discursos sobre sua própria condição, sustentados por suas vivências – aquilo que o outro, por mais empático, não alcança. Estabelecer tal pano de fundo para a crítica das cenas apresentadas é situar a discussão estética novamente em tensão com a política, considerando o modo como se dão as partilhas do discurso e do sensível, e um ponto para onde política e teatro convergem: a questão da representação.
“Precisamos Urgentemente Falar sobre Isso”, escrita por Raquel Albergaria e Antonio Mello, e dirigida por ela, coloca o espectador diante da estranheza de uma cena que declaradamente critica o racismo, mas na qual os protagonistas são representados por atores brancos. Não se opera o tipo de inversão que já vimos contra o machismo em “Rosa Choque”, por exemplo; a escolha manifesta em cena é por mais uma vez colocar o branco a falar do negro, o que permite indagar as implicações desse tipo de representação num contexto – o da sociedade em geral e o do teatro especificamente também, onde o negro é invisibilizado.
Há, certamente, um jogo entre o que se vê e o que se diz. Homens brancos, de camisa, gravata e terno – a imagem das figuras que detêm o poder – representam professor e criança de moletom. Esse desencontro entre a imagem e o discurso opera um deslocamento que pode ser lido em chave irônica – porém, a ironia é dos recursos expressivos mais fugidios, especialmente contra um imaginário bombardeado minuto a minuto por imagens de branqueamento. Nesse contexto, pesa uma frase trocada entre o professor e o aluno sobre a dificuldade de se definir a cor da pele, eco de um discurso sobre a miscigenação racial brasileira que reforçou o mito da democracia racial e, hoje, é frequentemente questionado por ativistas do movimento negro, opondo as vivências de quem é “lido” como branco e quem é “lido” como negro: aquele para quem para o táxi ou para quem para a viatura.
Ao mesmo tempo, o grupo de atores ao fundo compõe um coro silencioso que aponta para a responsabilidade dos brancos na perpetuação do racismo, por meio de duas imagens simbólicas: as mãos para trás (embora não atadas) e as mãos manchadas de vermelho. Enquanto, no vídeo, a violência contra a criança negra é mostrada em suas cores reais. Com isso, completa-se o paradoxo de uma cena que expressa, desde o título, a urgência de se falar sobre o racismo no Brasil, mas cuja forma nos olha a indagar sobre que falta de representatividade é esta que se perpetua.
Em “Ótima Ideia – Uma Caminhada Lenta ao Redor do Bosque com Límerson Morales”, de Bauru (SP), o ator apropria-se do formato stand-up para criar uma cena de forte comunicação com o público, como é próprio do gênero, mas operando subversões dos sentidos comumente expressos nesse tipo de criação no contexto de produção brasileira, deslocando-se do senso comum para apresentar um humor que contempla tonalidades do pateta, do nonsense e do perspicaz sem reiterar preconceitos. Mostra que, sim, é possível rir sem perder o horizonte ético de implicações do que é dito.
Para tanto, Límerson traz para a sua fala a própria questão dos limites do falar e do compreender. “Eu vim aqui/ para falar/ sobre a dificuldade/ de falar”, diz, pausadamente, e a frase poderia prosseguir: “sobre a dificuldade/ de falar/sobre a dificuldade…”. Estamos no território da ironia e da constatação da falha cômica na linguagem, em si e em todos – não num “outro”. Assim, o ator estranha o próprio nome e, ao anunciar sua primeira imitação: a de um humano, estranha o próprio ser. Eis um dos maiores deslocamentos em relação à tradição do humor que faz graça de estereótipos, especialmente dos desprivilegiados socialmente: com Límerson, é toda a categoria humana que se exibe como risível.
Mesmo quando força o riso no público, com a imitação de um coelho agressivo, que retorna como refrão, é cada vez mais distanciado que o ator o faz, a certa altura citando a si mesmo, como um reconhecimento da inteligência daquele à sua frente para mais do que o reagir automaticamente a estímulos repetidos. O riso, então, vem não para confirmar ou conformar, mas, sim, como uma nota destoante a ecoar nossas idiossincrasias.
Terceira cena da noite, “Sala de Espera”, vinda da capital paulista, arquiteta-se segundo a hierarquia de classe vigente no sistema trabalhista capitalista. Os três atores confinam seus corpos ao espaço exíguo da sala de espera de uma grande corporação para a qual pleiteiam uma vaga. O que está em jogo é menos a competitividade entre eles por um lugar que os inclua dentro do sistema financeiro do que o modo como se igualam na relação de inferioridade com a empresa. Isso se constrói fisicamente em cena, pela gravação em off da representante da empresa que paira sobre o palco como uma voz divina, e pelo olhar do trio sempre de baixo para cima.
Além disso, a dramaturgia evidencia o silenciamento dos corpos operários diante dos discursos de marketing e o apagamento de sua humanidade, na medida em que a postura, a fome e até o sistema excretor responde ao tempo e ao espaço determinados por uma relação de mercado. Nesse sentido, o abocanhar da banana escondida e o pedaço de papel higiênico enroscado nos pés da atriz são os vestígios daquilo que no humano resiste a ser máquina.
Por fim, o “Rolezinho – Nome Provisório”. Alexandre de Sena e muitos outros e outras artistas negras da cidade já haviam impactado os presentes na abertura do Janela de Dramaturgia, no CentoeQuatro, ao apresentar a somatória simples da leitura de um manifesto poético pelo aquilombamento com a presença de um grupo de mulheres e homens negros que subiu ao palco e posicionou-se à frente dos debatedores, ocupando um lugar, mostrando a si próprios, ainda tão invisibilizados dentro do regime de imagens do nosso tempo. Naquela ocasião, Sena citou Emicida: “nem todo mundo que tá é, nem todo mundo que é tá.” Ali, enfim, estavam.
Esses artistas, acompanhados já de outros mais, continuaram com as ações desse rolezinho até a mais recente, que encerrou o Festival de Cenas Curtas. Outra vez, a combinação do manifesto poético pelo empoderamento negro com a energia da presença do corpos fez-se potente como acontecimento estético e político que nos confronta, em níveis muito além dos racionais, com o racismo persistente em todas as instâncias sociais, inclusive o teatro, e com a força e a dignidade desses corpos culturalmente apagados. A linguagem da performance, aquela mesma que se define não pelo fazer, mas pelo “mostrar-se fazendo”, vem ao encontro de um projeto estético-político cujo fundamento é: existimos.
Ao mostrar que existem, gesto ontológico, esses artistas reagem ao silenciamento e à invisibilidade históricos e expõem radicalmente a necessidade de se repensar e redistribuir a partilha do sensível, do imaginário, dos espaços de representação e ação, por uma sociedade que não se justifique com uma democracia racial ilusória, mas comece, já, a desconstruir opressões e privilégios. Quando 40 artistas adentram o palco vazio, o que se tem é uma ocupação artística para tomar o lugar de fala que lhes é de direito pela própria vivência. “Há 500 anos estou aqui”, diz a atriz. Depois, “eu não sou mais criada”.
A poesia expressa no manifesto cumpre a função de colocar a questão no circuito dos discursos correntes em espaços legitimadores como o palco do Galpão Cine Horto. Mas a linguagem, por natureza, é limitada – como Límerson havia nos lembrado cenas antes. Tenta dar conta de um mundo que não se reduz a ela. O grito, não. Um grito, qualquer um entende com o tremular das próprias células atravessadas por essa força energética que se transmite corpo a corpo. É da ordem da experiência, anterior ao processo civilizatório que viria a instituir as opressões e segregações. O longo grito dos 40 rasgou a escuridão de nosso tempo. Que ecoe e ecoe e ecoe até que não seja mais preciso gritar.
Em tempo: As cenas mais votadas pelo público foram “Feito de Som e Fúria” (MG), “Valentin vs Valentin” (SP), “Little Boxes” (MG) e”Sala de Espera” (SP). Neste ano, por razões de produção, não se oficializou a escolha da quinta cena pela crítica. Ei-la declarada aqui: “Rolezinho – Nome Provisório”.