— por Luciana Romagnolli —
Toda crítica escrita no calor da hora sofre do imediatismo das primeiras impressões, conexões e reflexões. Na segunda noite do 16º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, universos ficcionais muito distintos tomaram o palco, compondo um conjunto marcado pela diversidade de linguagens cênicas, desses que depõem sobre a pluralidade da arte teatral, abrangendo o circo, as artes visuais, a música e os bonecos. Se algo há em comum entre as quatro cenas apresentadas, talvez seja apenas a crença na representação dramática – distanciando-se do performativo, que tanto espaço tem ocupado na cena contemporânea.
“Frágil”, de Igor Godinho e Maru Rivera, faz do palco uma delicada e sinistra caixinha de música, onde ela é a boneca a cumprir uma partitura lúdica que indicia a infância, em toda sua ternura, e a contraparte da morte, em tons sombrios e fantasmagóricos. A luz inunda a cena desse contraste, brilhante sobre a atriz, densa escuridão tonalizada de azul ao seu redor. Os longos cabelos negros a emoldurar o rosto muito branco sugerem uma beleza de morte, que se realiza plenamente quando a peruca é retirada num gesto lento que precipita o horror intuído, mas, se é justo chamá-lo assim, é um horror cujas sensações visuais provocadas são da ordem do belo, do frágil e mesmo do afetuoso que pode existir na fantasmagoria da solidão.
A cena se constrói por uma forte qualidade imagética, impregnando as retinas dos espectadores de quadros pictóricos, sucessivamente recortados pela luz, de um corpo que esculpe silenciosamente vestígios de memória e sonho. Instaura-se um mundo outro, estranho, no qual as habilidades circenses de Maru Rivera, particularmente na arte do mastro chinês, estão a serviço da dramaturgia, do gesto poético, e estabelecem uma fruição menos na chave da virtuose do que da geração de efeitos de sentido, cinéticos e sinestésicos, para compor o universo ficcional. O modo como o corpo dela responde ao ritmo pendular do balanço de pneu que pende do mastro cria uma coreografia vagarosa, a harmonia de um organismo que se sincroniza com o que lhe é exterior. Eis a dramaturgia abstrata, sugestiva, aberta a acolher o que a imaginação do espectador, a partir de suas memórias e sentimentos, sobre ela depositar.
Vinda de Angra dos Reis (RJ), “A Cabaça da Existência” apresenta um mito originário para a criação da Terra, a partir de uma cosmovisão de raiz africana, que confronta nosso imaginário historicamente colonizado pelas religiões cristãs com outra narrativa fundadora, gesto fundamental em uma sociedade que se quer diversa, mas segue perpetuando referências culturais e filosóficas de uma mesma matriz.
Com direção de Camila Rocha e dramaturgia de Felipe Barbosa, a cena convoca a musicalidade e a corporeidade do teatro negro para encenar esse tempo e espaço míticos. Para intensificar as energias correntes e os sentidos gerados entre palco e plateia, faz-se necessário que os atores invistam numa maior qualidade de presença para seus corpos, especialmente nas emissões vocais, de modo a instaurar uma zona de afetação que envolva todos os presentes. Assim, uma questão técnica, como a dicção pouco clara, não se tornará barreira para a comunicação de um conteúdo com tamanha potência simbólica. E sensória, se a música e o movimento assumirem a qualidade quase ritualística de invocação que tateiam.
Semelhante questão se coloca em “Agora, é a Cerimônia do Adeus”, cena criada no norte paranaense, na cidade de Londrina. Embora três músicos executem, ao fundo, uma sonoridade envolvente no violão, guitarra e violoncelo, o ator, dramaturgo e diretor Rafael Garcia atua como se estivesse sozinho em cena, descolado dessas presenças fortes que concorrem com a sua, sentido a vantagem que a música tem sobre a palavra quando esta não encarna sua própria presença e musicalidade. No acordeom, o ator se conecta ao trio e a sonoridade produzida instaura a atmosfera de um interior perdido na memória.
Quando assume personagens, entretanto, o plano musical sobrepõe o da representação. A fragmentação e a desordem narrativa, que parecem evocar tempos passados, idades várias da vida de um ou mais homens, inclusive Lampião (nome que se ouve repetidamente), permanecem desconexas, de difícil articulação entre si, como uma lembrança que não se alcança de todo, que não se realiza. E o que sua emergência vem nos dizer hoje? As velhas fotografias e o título sugerem uma despedida e uma saudade que não se concretizam com clareza ainda.
Assim como a estrutura textual, o esforço do ator em transformar a postura de seu corpo e o registro vocal para mimetizar cada idade demonstra um desejo de deslocar a percepção e provocar fraturas e dobras na linearidade da vida. Talvez pelo próprio autocentramento criativo que o acúmulo de funções confere, o desempenho desse propósito parece voltar-se para dentro do palco, para dentro de si. Possivelmente, um olhar de fora possa travar um diálogo criativo que propicia a travessia até o espectador.
Para encerrar a noite, a atriz e manipuladora Naiara Bastos une criativamente elementos de palhaçaria e animação de bonecos na cena “Valentin vs. Valentin”, de São Paulo. Na constituição do boneco que com ela divide a cena, chamam atenção a flexibilidade e a articulação da boca e da região maxilar, que permitem forjar expressões mais complexas de dúvida, surpresa, irritação e incompreensão, por exemplo, e humanizam o personagem, causando forte efeito cômico.
De posse desse objeto inanimado tão carismático, Naiara estabelece um jogo entre o boneco e sua manipuladora que supera a hierarquia do orgânico sobre o inorgânico. Nas primeiras ações, o boneco é manipulado seguindo uma partitura típica de palhaço, pela qual cada ação cria uma nova dificuldade, e o despender de uma energia muito maior do que seria necessária ressalta o patético do cotidiano e instaura a comicidade. A cena, então, avança para essa relação direta do objeto com o humano, atravessando camadas entre a ficção fechada e o real, ou, ao menos, a zona híbrida onde a fábula toca o real da presença da manipuladora e a ficcionaliza. O domínio de Naiara em fazer confluir a técnica de manipulação com sua própria performance como atriz gera momentos inusitados e constrói um território comum e afetivo entre dois mundos intransponíveis.