— Luciana Romagnolli —
Crítica da peça “Massa Sonora de Sujeitos em Movimento N° 1”, de Henrique Vertchenko.
“Mais tarde, ela pode tirar os pés desses dois pontos, sair do quadrado que é a cozinha, romper o retângulo que é a casa, traçar um emaranhado de traçados, colocar um pé na frente do outro incontáveis vezes, mesmo que suas pernas doam, se reduzir novamente a um quadrado mas ocupando diversos pontos com os pés inquietos, e ter sua velocidade multiplicada por 22 em uma direção sem sentido, mesmo que seja por inércia”.
Nestes quatro anos de Janela de Dramaturgia, vimos possibilidades variadas de relação entre texto e cena. Houve vezes em que as palavras escritas revelaram-se muito mais potentes ao tomarem corpo na leitura cênica, algumas a ponto de se pensar se não seria esta mesmo a sua forma privilegiada – respectivamente, casos de “O segundo inverno” e “Origami”, para ficar em exemplos recentes. A estrutura dramatúrgica proposta por Henrique Vertchenko em “Massa Sonora de Sujeitos em Movimento N° 1”, entretanto, apresenta-se como um problema – no sentido matemático – para a criação cênica. Não há julgamento de valor nisso. Há, sim, a percepção das diferenças entre as experiências da literatura, da leitura cênica e da (virtual) encenação da ópera não-cantada proposta pelo dramaturgo.
Como literatura, o texto articula tempos e espaços que confrontam a relação humana com a cidade, de início por um processo mais assemelhado ao que se convencionou a ver como um espelhamento do mundo exterior, incluindo questões imediatas como o metrô, a manifestação e a bicicleta, embora o Vizinho já aponte para o fundar de um mundo exterior, próprio da natureza literária segundo M. Blanchot, fazendo da palavra uma possibilidade de resistência ao anêmico e à desordem de um cotidiano que infraexperiencia o espaço urbano (ou a vida, mesmo). O fantástico, na figura surreal do avestruz vestido de cigana com bico de ouro, seria o auge dessa experiência do fora? Ali onde é possível pensar o impensável e propor distintas estratégias de vida?
Como literatura dramática, “Massa Sonora” aponta para a centralidade que o ritmo há de ter na transmutação das palavras em sons, vozes, respiros e silêncios. Solicita a quem o encene qualidades de maestro e controlador de tráfego, para que as perambulações dos personagens, entrecortadas por reflexões analítico-poéticas, não percam fluência em meio aos tantos ires e vires de figuras urbanas que passam pelos nossos olhos como transeuntes avistados da janela de um veículo. Não é o espaço irreprodutível da cidade o que mais desafia a arquitetura cênica, pois há metáfora, metonímias ou vazios a serem preenchidos por palavras-imagens para que este se instaure. É o tempo dos deslocamentos. A considerar a leitura realizada no Janela de Dramaturgia e a de um tratamento prévio do texto, a falta de ritmo na orquestração das vozes dificulta a apreensão de uma linha de ação que, na leitura em papel, é clara.
A bem da verdade, quem perambula é o texto e se há personagem é a cidade. A Senhora, o Vizinho e os outros atuam mais como condutores de um olhar que erra pelo espaço urbano, como que impulsionado pelo desejo que movia Guy Debord, Helio Oiticica e outros que experimentaram a potência sensível da deriva para escapar dos traçados determinados. Uma dramaturgia-deriva a ser realizada, quem sabe, sobre um “quadrado estático”, “mas ocupando diversos pontos com os pés inquietos”.
Falar do caráter musical de “Massa Sonora” é uma obviedade necessária, anunciada já pelo autor. Eis que é um ruído – o “trick trick” – o que põe em movimento o novelo de acontecimentos a se desdobrar. O prosaico da Senhora contrasta com a metafísica do Vizinho, espécie de narrador onisciente a observar a dimensão física e poética percorrida. “O tempo que ainda vai levar para o tempo abrir”, diz, como quem calcula. O principal paradoxo do texto é justamente esse cálculo que desenha esquemas sobre a desordem. Um gesto de organização do mundo que procura atribuir-lhe um sentido matemático, geométrico, analítico, até que a irrupção do surreal varra a lógica da cidade. Mas sem, para isso, desobedecer a lógica do texto, preparado desde o início com frases que ecoariam no desvario final.
“Massa Sonora” desenrola-se como um diagnóstico poético-racional sobre o humano como um ponto em deslocamento no tempo e no espaço urbano, este emaranhado ao qual se deleita em subverter.
*Leitura Cênica realizada em 15 de setembro de 2015, no IV Janela de Dramaturgia, em Belo Horizonte.