Por Soraya Belusi (*)
A morte como possibilidade de se enxergar a vida por uma perspectiva outra daquela que denominamos como real. Apenas indícios, lastros de identidades que, um dia talvez, tenham se configurado como plenas, mas que, ao atravessarem a fronteira, se explodem em vozes estilhaçadas sem se configurarem como sujeitos unitários, completos ou reconhecíveis. É preciso morrer (ou, no caso do espectador, matar-se) para tornar-se outro(s).
Fotos Elenize Dezgeniski |
“Gafanhoto”, espetáculo que abriu as apresentações da Mostra de Dramaturgia do Sesi, desestabiliza o dramático (e consequentemente o humano) ao se apropriar de forma potente de procedimentos propostos pelas dramáticas do transumano, elaborada por Roberto Alvim, que coordena, há cinco anos, o núcleo de criação em Curitiba.
Em sua escritura, Paulo Zwolinski, autor do texto, opera deslocamentos na linguagem que impossibilitam a construção unívoca de sentido, por meio de procedimentos de repetição, replicação e variação, esvaziando o significado a cada nova citação, buscando, através da própria arquitetura línguística, lançar o espectador em experiências de destruição e devastação, embaralhando o entendimento em prol da construção de intensidades colocadas em trânsito permanente, deixando entrever forças de violência e sexualidade.
“E então eu já estou morto
tente ao menos tocar minha fumaça”.
Não há mais o sujeito ou o personagem. São emissores que parecem não falar (apenas) de si mesmos, apresentam-se de maneira instável, como se povoados por outros. Restam “testemunhos” de subjetividades que parecem cohabitar tempos e espaços fluidos, mutáveis e indefiníveis. Não há mais certezas nas quais se agarrar. Assumem a destinerrância como condição. “Como a morte, a indecidibilidade, o que chamo também de ‘destinerrância’, a possibilidade para um gesto de não chegar ao destino, é a condição do movimento de desejo, que de outra forma morreria antes do tempo”. (J. Derrida, em Sur Parole.Instantanés philosophiques, p. 53).
A encenação de Don Correa se equilibra entre fornecer ao público signos inicialmente reconhecíveis (como por exemplo os figurinos “cotidianos”) para negá-los na sequência, ativando, pela fala dos atores (Eduardo Ramos, Sávio Malheiros e Maíra de Aviz), esses diferentes modos de subjetivação, que também são colocados em trânsito pela maneira com que o diretor mobiliza os recursos de luz, construindo e destruindo tempos e espaços impermanentes, dando a ver as presenças-ausências que habitam a fronteira entre a luz e o breu.
(*) Viajou a convite da Mostra Sesi de Dramaturgia