— por Marcos Antônio Alexandre (Faculdade de Letras – UFMG/CNPq) —
Crítica sobre o espetáculo Madame Satã, do Grupo dos Dez (MG).
Qual é o espaço do negro e da sua cultura na sociedade brasileira? Existe uma instância de representação do discurso enunciado pelos negros? Qual o lugar do teatro negro na nossa contemporaneidade?
Em tempos de debates e discussões sobre os distintos discursos que vêm sendo invisibilizados nos grandes centros hegemônicos de representação, não posso deixar de fazer alusão à recente onda de protestos, veiculados nas redes sociais e motivados pela apresentação do espetáculo A Mulher do Trem, da Cia Os Fofos Encenam. A peça foi cancelada porque membros do Movimento Negro se sentiram indignados com a presença, na montagem, de duas personagens que faziam uso do blackface. O espetáculo é realizado desde 2003 e, no momento de seu cancelamento, integrava a programação do mês de maio do Itaú Cultural de São Paulo.
Muito se discutiu sobre a questão do preconceito, sobre o porquê da discussão, uma vez que o espetáculo vem sendo apresentado há anos e só agora tais aspectos foram questionados. A polêmica ganhou uma dimensão tão abrangente que o Itaú Cultural resolveu promover um debate aberto [1] com a participação de artistas e ativistas do movimento negro, entre eles participaram Fernando Neves (diretor de Os Fofos Encenam), Eugênio Lima (dj e ator), Sthepanie Ribeiro (blogueira), Dennis Oliveira (Coordenador Quilombação) Roberta Estrela D’alva (atriz) Salloma Salomão (Cia Os Crespos), Aimar Labaki (dramaturgo), entre outros ativistas e membros da sociedade civil interessados na discussão. Neste debate, vários questionamentos foram feitos sobre o papel do teatro na sociedade, o papel do negro e da sua cultura em nosso contexto e se questionou sobre a relevância de, em pleno século XXI, ainda fazer uso da técnica de pintura do rosto de um ator branco (ou não) com tinta preta para “representar” um sujeito negro. Os negros não são capazes de representarem a si mesmos ou qualquer outra personagem? Fomentar o estereótipo? Ridicularizar a figura do negro? Provocar e incitar o humor a partir da exposição caricatural dos afrodescendentes? Vários pontos de vista foram trazidos para discussão, e o aspecto positivo de toda esta “cena” – que, em princípio não deveria fazer parte de nosso cotidiano, mas muito necessária justamente pelo contexto e histórico de segregação e de preconceitos ainda vividos pelos negros na nossa contemporaneidade – foi o fato de a sociedade se mobilizar, reivindicando o seu lugar de fala, de debate e discussão.
O motivo de retomar brevemente esta polêmica passagem em que se envolveu a Cia Os Fofos Encenam é para trazer para discussão o trabalho do Grupo dos Dez [2], coletivo mineiro formado por um elenco majoritariamente negro [3], que se dedica à pesquisa sobre propostas espetaculares de teatro musical tipicamente brasileiros. Com base nestes princípios artísticos, o grupo concebe “Madame Satã”, peça que estreou em 23 de janeiro de 2015, na Programação da 9ª edição do VAC – Verão Arte Contemporânea e como resultado da equipe de trabalho selecionada para a 17ª edição do projeto Oficinão Galpão Cine Horto 2014.
Na concepção de “Madame Satã”, o Grupo dos Dez se vale da biografia de João Francisco dos Santos (Glória do Goitá, 25/02/1900 – Rio de Janeiro, 11/04/1976) – personagem emblemática da vida noturna marginal carioca, filho de Manoel Francisco dos Santos e Firmina Teresa da Conceição, criado numa família de dezessete irmãos e que, segundo a sua biografia, chegou a ser trocado pela mãe, quando criança, por uma égua –, fazendo-a dialogar com histórias de outras personagens marginalizadas e, por sua vez, invisibilizadas, suscitando, assim, apontamentos que permitem que os espectadores possam refletir sobre questões que perpassam a crítica contra o racismo, a homofobia, a lesbofobia, a misoginia, a transfobia e o machismo. Para levar à cena a leitura da vida de Madame Satã, o grupo utiliza como referência a corporeidade das danças afro-brasileiras, em especial a capoeira e a dança dos Orixás. O espetáculo tem direção de João das Neves, codireção de Rodrigo Jerônimo, direção musical de Bia Nogueira e dramaturgia de Marcos Fábio de Faria e Rodrigo Jerônimo, com várias composições musicais autorais de integrantes do grupo.
“Madame Satã” sobressai por apresentar ao público uma montagem legitimamente concebida dentro da estética do teatro negro. Conceitualmente, o espetáculo trabalha com os cinco pontos propostos pelo pesquisador Eduardo de Assis Duarte, em seu artigo “Por um conceito de Literatura Brasileira” [4], para a leitura da literatura afro-brasileira, e com os quais busco estabelecer diálogos para análise da cena negra produzida no Brasil, a saber: “temática”, “autoria”, “ponto de vista”, “linguagem”, “público”.
O fato de resgatar a biografia de Madame Satã já evidencia que há um cuidado em trabalhar de forma incisiva com a “temática” negra. As personagens remetem ao universo da boemia, a uma casa de prostituição do baixo meretrício da região da Lapa ou de qualquer centro urbano: além de Madame Satã, uma cafetina, Catita, várias prostitutas – e uma travesti, Primorosa. Este aspecto é trazido para cena desde o início da representação, onde os atores/personagens ocupam o espaço urbano. Um bar simples, sediado ao lado do Galpão Cine Horto, se converte em o “ambiente decadente” que é ocupado por cantores, malandros, putas, ou seja, as personagens marginalizadas que serão retratadas nas cenas. O centro urbano é ressignificado, propondo uma dramaturgia do espaço que passa a ser reocupada pelas personagens marginalizadas e o público, que se divide entre assistir a performance dos atores/personagens, escutar as músicas – instaura-se uma roda de samba e aquele espectador mais animado não deixa de cantar e dançar –, tomar uma cerveja enquanto o “teatro” ainda não começa. Na realidade, a quarta parede já foi rompida e tudo já integra o jogo espetacular. A cafetina interage com o público e incita a suas meninas a circularem pelo espaço para ganhar a vida, e elas tomam conta do entorno do Galpão Cine Horto, invadem e interrompem o trânsito local, parando carros, mexendo com os motoristas. Catita se dirige a alguns espectadores apresentando o “material” que tem para oferecer, chama a atenção daquelas “meninas” que não estão se dedicando à função: “Ei, bonitinha, tá achando só porque é estrangeira pode ficar aí parada? Já falei para não dar ideia para malandro que não paga. (Para o malandro – algum homem presente) E você, tá olhando o que. Vaza! Deixa minha menina trabalhar.”.
Nesta profusão de cenas entrecortadas e que se complementam, em meio à bebida, à roda de samba, à diversão, em certo momento, uma moto barulhenta e em alta velocidade para nas imediações da entrada do Cine Horto e um motoqueiro dá uma alvejada de tiros em Primorosa, a travesti. O público é convidado a adentrar ao espaço de representação, deixando o corpo daquele sujeito estirado no chão: cena que produz um déjà vu ao olhar do espectador mais atento.
A temática das personagens marginalizadas continua sendo evidenciada nas histórias paralelas que integram a dramaturgia do espetáculo. Durante o desenvolvimento da peça, outros “tipos sociais” integram a trama: Alberto, um policial preconceituoso, com um discurso repleto de ironia e uma linguagem de baixo calão, que é morto por Madame Satã; presidiários, que representam os sistemas carcerários brasileiros, com a ideia de superlotação ou cenas de violação sexual – referência à cena de estupro de um prisioneiro em Ilha Grande ou em qualquer outro centro carcerário brasileiro; homens que frequentam a zona; um grupo de retirantes que personifica o momento em que, para continuar sobrevivendo à aridez do sertão, a mãe Firmina vende o menino João ao Sr. Laureano, um domador e criador de cavalos, em troca de uma égua; um grupo de reacionárias que incita a plateia com discursos politicamente incorretos, fazendo com que o publico ria, num primeiro momento, mas logo se cale, devido ao tom e força dos discursos.
REACIONÁRIA 1: Muito bom, esses nordestinos vem para o sudeste montar favela aqui, deixar tudo uma zona. Pena de morte para os Nordestinos…
TODAS: Isso mesmo, bravo!
[…]
REACIONÁRIA 3 : Deixa eu falar uma coisa: estou cansada desse negócio de neguinho ter “privilégios” tirando os meus privilégios. Eu estudo como uma louca para dar conta e vem neguinho e rouba minhas vagas com essa tal de cota. Abaixo as cotas raciais. Meritocracia já.
TODAS: Meritocracia já!
[…]
REACIONÁRIA 5: E digo mais, esse bando de preto que só sabe roubar. Tem que ficar preso mesmo. Tem que ter prisão perpétua. Bandido bom é bandido morto. (Para o público) Ficou com dó, minha senhora, adota e leva pra casa.
REACIONARIA 6: E esse monte de bolsa que existe, minha gente? E bolsa tudo. Bolsa família, bolsa tênis, bolsa favela. Agora inventaram uma tal de bolsa família de presidiário… E minha família, que bolsa que eu tenho? Eu pago os meus impostos e se me ferro.
Os questionamentos trazidos para cena buscam extrapolar o espaço de representação dramatúrgica/ficcional, atingindo o espectador com aspectos incisivos em relação ao contato com o Outro no contexto de enunciação brasileiro, no qual os sujeitos marginalizados continuam sendo invisíveis aos olhos dos políticos e de grande parte da sociedade como um todo, que prefere não ver ou discutir sobre as alteridades que nos confrontam. Sem sombra de dúvida, muitos poderão dizer que o espetáculo é panfletário e/ou militante, mas é exatamente este lugar de fala que a abordagem temática busca trazer para discussão, pois se esta fosse uma questão resolvida em nossa sociedade, certamente não estaria ainda sendo discutida. Esta assertiva pode ser corroborada, por meio das palavras de uma das atrizes do elenco, Laís Lacorte [5], que, ao fazer referência à sua participação na peça, argumenta que:
“Durante todo o processo de montagem deste espetáculo, tive a oportunidade de aprofundar minhas reflexões acerca de todos os temas que a peça aborda, por meio de discussões que surgiam durante o processo de montagem. Compreendi ainda melhor o meu lugar dentro da esfera social enquanto mulher, negra e favelada, e constatei o quão importante é ter um teatro que se proponha a falar sobre tais discussões, revi assim a relevância do papel social e político que o teatro exerce”.
Os argumentos da atriz se justificam não só por demonstrarem o seu processo de construção identitária, como também por legitimar a força e a importância das reflexões suscitadas pelo processo da montagem e que são apresentadas para que os espectadores possam colocar em cheque as suas considerações e inquietações.
Assim como a “temática” é bem sucedida para corroborar a proposta estética de trabalho com o teatro negro concebido pelo grupo, em “Madame Satã”, a “autoria”, o “ponto de vista” e a “linguagem” também o são. O texto dramático é concebido por autores negros e que têm identificação com os aspectos socioculturais relacionados com o negro; o ponto de vista interno retrata os lugares de fala e as mazelas enfrentadas por esses sujeitos/personagens, e os autores e atores envolvidos na montagem têm a preocupação de trazer para as cenas cada personagem crivada pela linguagem que lhe é peculiar. A linguagem é corporificada cenicamente, ou seja, cada sujeito representado é retratado com a linguagem que resgata o seu lugar de enunciação: o malandro, as putas, a cafetina, o policial, todos trazem um discurso peculiar em que se tem o cuidado de resgatar as gírias, as tonalidades, os registros de falta de cada sujeito representado. Chama atenção, a título de exemplo, o discurso homofóbico e repleto de preconceito do policial Alberto, cena em que se revive o momento em que Madame Satã é detido e enviado para a Ilha Grande, pelo seu assassinato:
“Esses veado têm tudo que morrer; Veado; Veado; Psiu, ô, veado; Eu tô falando é com você! É! Você! Eu tô falando é com você mesmo seu veado! Calma gente, tá tudo bem! Eu sou da Guarda Civil. Eu só preciso ter um conversa com o… João Francisco dos Santos? Com o veado aqui! Arrombado, bicha, bambi, boiola, boneca, gazela, maricas, morde-fronha, mama-rola, queima-rosca! ARTISTA!? Então quer dizer que você é artista? 28 anos. Sua profissão: AR – TIS – TA. Artista é o caralho! Artista de dar a bunda! Você não tem vergonha de sair por aí vestido desse jeito não? ‘A Casa de Sapê tem o orgulho de apresentar a travesti sambista… Travesti sambista!?’ Vejam só!!! ‘A Mulata do Balacochê!!!’ Você não tem vergonha de sair por aí rebolando o cu desse jeito? […] No meu tempo, o sujeito transviado, a gente curava com surra de vara de marmelo. E digo mais! Digo mais! Desculpe, mas aparelho excretor não reproduz! É feio dizer isso, mas… Dois iguais não fazem filho! Pra mim quem defende o homossexualismo, defende uma doença e defende o fim da humanidade! Prove-me o contrário! […] Tu acha que essa fantasia esconde o que você é? Veado escroto! Veado, vagabundo e proxeneta, é isso que você é! Ou tu some daqui agora com essas suas preta fedida, ou tu vai levar umas porradas nessa sua cara preta! Aqui não tem lugar pra você não seu veado imundo! Aqui na Rua do Lavradio, veado não pisa! Eu sou o responsável pela Lapa, e no meu pedaço bicha não tem vez! Xibungo de merda! Sua bicha passiva, asquerosa”
Esteticamente, vale a pena ser destacado o fato de o grupo se propor a realizar um teatro musicalizado em que as ações dramáticas, as histórias e os relatos trabalhados ao longo do desenvolvimento do espetáculo são interconectados pelas “histórias” das personagens. Destaca-se a qualidade do elenco, no qual todos envolvidos demonstram ter uma excelente domínio vocal e aptidão para tocar instrumentos de corda, sopro ou percussão. Há uma sincronia nas vozes das atrizes/putas e dos atores (coro – Madame Satã) que reforça, muitas vezes, os espaços de ambiência retratados nas cenas, a casa de putas e a movimentação existente no bordel, as atrações musicais que fazem daquele lugar um ponto de encontro de sujeitos invisibilizados.
Outro aspecto que reforça a estética negra é a corporeidade dos atores em cena. Salta aos olhos o uso do corpo não só como uma instância de representação e execução de uma partitura física, mas como uma possibilidade de resgate de um lugar de memória. Nesta perspectiva, chama atenção a ideia da direção de utilizar três atores para representar momentos distintos da vida de Madame Satã. Os atores Denilson Tourinho, Evandro Nunes e Rodrigo Ferrari dão vazão a nuanças distintas de passagens da vida da personagem. Cada um imprime, a sua maneira, uma corporeidade à personagem. Tourinho se destaca em uma das cenas como a Mulata do Balacochê, a travesti sambista que é a grande atração da Casa do Sapê, o bordel de cafetina, Catita. O ator executa uma performance em que cada ação física e gestual se mescla com uma dança-ritual proposta para desvelar as particularidade do jogo de dubiedade inerente à personagem: homem x travesti, delicadeza de movimentos x exaltação da virilidade e do tônus muscular, sedução e encantamento da plateia. Por sua vez, Rodrigo Ferrari, revive Madame em outra cena em que interpreta uma canção na qual se nota mais uma vez uma corporeidade do ator que nos remete ao corpo híbrido da personagem – negro, pobre, homossexual, nordestino, travesti –, o gestual do ator e a sua relação com o rito são evidenciados, demonstrando a incursão pela pesquisa da dança dos Orixás e do jogo da capoeira. Por fim, Evandro Nunes traz para a cena outra corporeidade da personagem: o malandro, um Zé Pelintra que cruza pelas encruzilhadas e marca os espaços com o seu corpo-presença, o malandro que apresenta uma destreza nos passos do samba, que joga com o corpo, que sinuosamente desvia entre os movimentos de capoeira e o rastro de uma energia corporal que é evidenciada em cada passo mediado pela dança-ritual proposta pelo ator/personagem. Trazer três Madames para a cena ratifica a potência da personagem, que se multiplica por meio da corporeidade de cada ator. Esta corporeidade, por sua vez, potencializa também a dramaturgia proposta, estabelecendo o jogo entre o textual, a linguagem e a dramaturgia de cada personagem. Isso pode ser verificado, por exemplo, na cena que antecede à prisão de Madame Satã por ter matado o policial Alberto, depois de ser ofendido pelo mesmo de forma degradante e preconceituosa, como já foi evidenciado.
(Madame Satã ergue o braço como se houvesse um arma em sua mão e aponta para o rosto de Alberto. Atira!)
MADAME SATÃ (As três madames dão o texto alternando entre elas): Que esse ferro que tomou todo meu braço, engoliu alguma razão. De vergonha e de ódio, de aquilo que não tem nome. Desgraça. Esse safanão que me acordou em um amontoado de bostas e merda que é, para sempre agora, minha vida. Minha pessoa estava linda. Seu desgraçado. Minhas pessoa era artista, seu desgraçado. Minha pessoa era gente, seu desgraçado. Minha pessoa era, seu desgraçado. E eram seus, aqueles olhos de besta, feroz. Roubou tudo que minha pessoa nunca teve. Era uma hora de felicidade. A bala caminhou em direção de duas desgraças.
Por fim, não posso deixar de comentar a singularidade do texto com o qual o grupo busca a formação de um “público leitor” por meio de sua proposta espetacular. Percebe-se o desejo de fazer do espectador coparticipe de cada ação que vai sendo corporificada pelos atores/personagens. A ideia é que a plateia não saia ilesa do espetáculo, que cada sujeito ali presente possa mediar a sua enunciação com o lugar de fala proposto cenicamente. Diante de tudo, fica latente a cena final em que os atores/personagens são divididos em pares héteros e homossexuais, onde se propõe um momento de encontro amoroso entre eles. As personagens entram em uma espécie transe, cantam baixinho uma incelença que culmina com o discurso, em forma de prédica, de Primorosa. Palavras que recuperam, ressignificam e contextualizam a de oração do Pai Nosso:
“Pai nosso que estais no céu. Muitos são aqueles que falam a oração de seu filho em vão. Repetem seu nome, mas perseguem o seu semelhante. Quando ensinaste, ó pai, que sem amor não poderíamos chegar ao seu reino, não aprenderam que matar e perseguir são práticas de ódio. Como fazem a sua vontade ao dizer que são mais retos que outros? O pão de cada dia é somente para seu próprio sustento e oferecem o pão envenenado aos que amam de maneira distinta. Pedem perdão às ofensas e seguem ofendendo aos seus semelhantes. De suas palavras sagradas, ó pai, recortam o que lhes interessam para justificar a morte. Pai, eles se sentem ofendidos por uma vida que não lhes pertence e sempre apontam atos alheios como pecaminosos. Pai nosso que estais no céu, santificam o seu nome em favor do acossamento e justificam o ódio que alimentam em seu nome pecando pela injúria e castração do livre arbítrio de seus irmãos. Pai nosso que estais no céu, eles criam falsos testemunhos, levantando o dedo para castrar os direitos dos outros. Ó pai, eles dizem todos os meus pecados e dizem serem os filhos mais amados. Pai nosso que estais no céu, perdoe-me pelos pecados que eles dizem que cometi. Quando peco por amar, quando peco por existir. Pai nosso, esse ódio é o que promove o meu medo e, assim, ó pai, sofro pelo ódio que é praticado em seu nome. Esse mesmo ódio que decreta ser todas as horas a hora da minha morte. Amém”
Estas palavras cortam, buscam atingir as memórias – pessoais e coletivas – e as identidades dos sujeitos que estão à margem do discurso e de todas as “benesses” possibilitadas pelas sociedades ditas globalizadas, fazendo-as dialogar (ou pelo menos buscando esta relação) com a enunciação de todos os presentes no teatro. A ideia é que as palavras continuem ecoando e tudo isso é reforçado com uma solução cênica em que se retoma o começo da proposta espetacular, demonstrando que os discursos aí presentificados permanecem latentes, sem respostas e que cada espectador deve vivificá-los à sua maneira:
(As luzes do teatro se apagam. Todos os personagens saem de cena. De repente, o motoqueiro da cena da rua volta. No palco, somente a Primorosa está em cena, no escuro. Com o farol da moto, o motoqueiro ilumina o personagem, que, assustada, tenta fugir. O motoqueiro dá três tiros na personagem, que fica caída em cena. Há um curto foco de luz nela, morta no chão. Todas a luzes se apagam)
[1] O debate pode ser conferido na íntegra no link: https://www.youtube.com/watch?v=LG_cRXBsKfE.
[2] O grupo nasceu em 2008 como um desdobramento das pesquisas realizadas pelos artistas João das Neves, Titane e Irene Ziviane, que são uma espécie de mentores do grupo. Em seu currículo, o grupo apresenta os seguintes trabalhos: Sagas no país das Gerais, direção de João das Neves e direção Musical de Titane; Evangelho bárbaro, direção de Elisa Santana e direção musical de Marcelo Onofri; e Madame Satã.
[3] Alysson Salvador (substituído, na segunda temporada, por Guilherme Ventura), Bia Nogueira, Daniel Guedes (substituído por Débora Costa), Denilson Tourinho, Evandro Nunes, Flor Bevacqua, Gabriel Coupe, Julia Dias, Kátia Aracelle, Laís Lacôrte, Nath Rodrigues, Rodrigo Ferrari, Rodrigo Jerônimo, Thiago Amador.
[4] Disponível em: http://150.164.100.248/literafro/ (link: Artigos).
[5] Atriz do grupo e discurso expresso em seu artigo intitulado “Diário de uma favelada: Relatos sobre o percurso criativo do espetáculo Memórias de Bitita – O Coração Que Não Silenciou”, escrito como parte de Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Teatro da EBA – UFMG.