Por Soraya Belusi (*)
É com um pé cravado no dramático, no pensamento hegemônico, no cotidiano do senso comum e na linguagem estabelecida que se apoia a escrita de Alexandre França em “a multidão num mínimo espaço de tempo e fúria”. Porém, os procedimentos adotados em sua dramaturgia apontam para uma problematização deste referencial, aparentemente para utilizá-lo como um discurso inicial a ser desmoronado ao fim (durante) da fruição da obra. Para isso acontecer de maneira mais potente e autoral, porém, sua realização cênica demanda também um grau de inventividade singular, própria e particular, que ainda não se realiza com total concretude na encenação.
Fotos Elenize Dezgeniski |
“Qual linguagem pode dar conta de um homem?”, se questiona (e nos questiona) o dramaturgo, instaurando-se também como presença. “Um homem”, “uma situação”, “sua linguagem”, parece elencar o autor os elementos com os quais pretende construir seu jogo linguístico na tentativa de complexificar justamente as percepções unívocas e imutáveis.
O sujeito (mesmo que colocado em crise e alguma instabilidade) ainda se apresenta como identidade reconhecível (definida por sua condição social, modo de falar e relações que estabelece com as outras identidades): o guardador de carros, o playboy, a velha fumadora de crack e seu filho. O percurso da autoridade do sentido para a alteridade radical (a morte do “eu cultural” para a possibilidade de encontrar o “outro”), proposta por Roberto Alvim e que inspira as criações do núcleo de maneira evidente, encontra algum lugar no embaralhamento dessas subjetividades iniciais proporcionado pela fala, efetivando-se principalmente na composição de Muhammad el Chab, numa cohabitação de vozes que proporcionam a instauração de outros tempos e espaços.
O desencaixe (que impede a morte para o nascimento de algo novo) parece residir num certo engajamento emocional (dramático) nas outras atuações, o que impede a palavra se despregue do sentido, deixe de ser significado para se tornar significante. Com isso, o que antes apontava para a complexidade, polissemia e desmoronamento, acaba sendo reafirmado pela forma imposta ao conteúdo. As vozes (pré)instauradas na sua dramaturgia, no entanto, aparecem cenicamente fragilizadas em sua potência de transmutação, instalam-se como tipos imutáveis, que reproduzem o status quo e julgam-se uns aos outros, explicitando “a fúria e o medo” que dão título ao trabalho, mas raramente alcançando a “multidão”. O “sempre talvez” não se estabelece, e o discurso termina por reafirmar a realidade, e não inventando outra.
“Um homem é um homem”, dizia Brecht. “Um homem não é um homem”, nos instiga Alvim. “É humilhante” “ser homem”, responde França, em sua tentativa de inventar sua própria poética, que parece transitar, neste trabalho, entre o ideario do drama e do transumano. É sobre forjar novas estratégias e singularidades (instaurar novos mundos) que se desenvolve as atividades formativas do núcleo. Isso se dá em menor grau na encenação, que tende a reproduzir modelos de seu mentor (com a espacialização em formação triangular, as estratégias de lidar com a luz ou a ausência dela, a repetição dos padrões nas modulações de voz), abrindo mão da invenção, de seu próprio modo de “esculpir no tempo e no espaço”.