— por Daniel Toledo —
Crítica de “E se elas fossem pra Moscou?”, da Cia. Vértice (RJ).
Trabalho apresentado simultaneamente como espetáculo e filme produzido ao vivo, “E se elas fossem pra Moscou?”, da Cia. Vértice, tem como ponto de partida um dos principais clássicos do dramaturgo russo Anton Tchekov, “As Três Irmãs”. Assim como na obra original, o que se tem, em cena, são três irmãs que, após a morte do pai, desejam, cada qual à sua maneira, dar novo rumo à própria vida.
A ausência paterna surge, então, como fato que parece afastar essas irmãs do mundo que existe fora das paredes e janelas da casa que habitam. Dentro dessas paredes, por sua vez, o que testemunhamos e ouvimos, a todo tempo, são impressões sobre a passagem do tempo, o esvaziamento da vida cotidiana e o permanente desejo de estar em outro lugar.
O desejo de mudança e a dificuldade de mudar são, assim, rapidamente anunciados como grandes temas do espetáculo, identificados como conflitos centrais de Olga, Maria e Irina, personagens que progressivamente conhecemos ao longo da encenação, em instigantes relações de proximidade e distância, potencializadas de diferentes maneiras pelas linguagens do teatro e do cinema.
No teatro. Logo no início do espetáculo nos entendemos como convidados um tanto “genéricos” da festa de aniversario de Irina, que completa 20 anos no mesmo dia em que se lembra um ano da morte de seu pai. Mas apesar de sermos, até então, completos estranhos àquelas personagens, assim como à vida e às relações humanas que se estabelecem naquela casa, somos tratados como amigos da família, com os quais as três irmãs não hesitam em compartilhar histórias, conflitos e sentimentos que de sua intimidade fazem parte.
Assistimos, da plateia do teatro, a uma encenação multifocal, com constantes interrupções entre as personagens, que se revezam na lida com o público e o aparato cinematográfico, exposto sem ressalvas. Enquanto Olga e Irina esforçam-se para entreter os convidados, Maria deixa ver desde o início seus conflitos com a festa ali anunciada, reconhecendo a estranheza da situação e aproximando-se, em certo sentido, da percepção do público em relação ao caráter supostamente festivo do evento que, juntos, construímos.
Os conflitos apresentados pelas personagens, no entanto, muitas vezes se dissolvem na relação com o público, que, justamente por não dominar a profundidade dos dilemas postos em cena, rende-se à espontânea comicidade da convivência entre elas e responde com o riso à sucessiva exposição de traumas e frustrações. Se em alguns momentos esse desarranjo produz potentes atmosferas de constrangimento, em outros termina por provocar desvios – intencionais? – em relação à densidade do texto de Tchekov e do próprio espetáculo.
A esse respeito, o momento em que as irmãs convidam o público a participar de uma pista de dança improvisada no palco parece trazer ao primeiro plano esse permanente jogo de proximidade e distância entre personagens e espectadores. Ao promover, em cena, uma celebração entre pessoas que não se conhecem, ressalta-se a superficialidade das relações construídas entre palco e plateia, ao mesmo tempo em que se revela a profunda solidão das personagens e se reconhece, por fim, a falta de sentido daquela comemoração.
Não por acaso, o que se tem a partir do momento em que os espectadores, com certo constrangimento, se retiram do palco é um nítido recolhimento das personagens e dos espectadores. “Ficou vazio de repente, né?”, observa Olga, algum tempo depois, em uma espécie de anúncio sobre clara curva de adensamento do espetáculo.
No cinema. Parece curioso perceber, nesse sentido, que na situação de co-presença, ou seja, na situação teatral, o riso se coloca de modo mais recorrente e irresponsável: rimos das personagens e de seus conflitos mais íntimos sem muito pudor, como se nós – ou elas – ali não estivéssemos presentes. Enquanto isso, quando estamos a sós no cinema, o que se tem é uma atmosfera mais sóbria, mais concentrada e, em certo sentido, mais cuidadosa em relação aos conflitos e ideias apresentadas em cena.
Se, na plateia do teatro, somos inseridos desde o início na casa das três irmãs, a experiência cinematográfica de E se elas fossem pra Moscou? nos sugere uma aproximação mais paulatina em relação à intimidade da família. Primeiro, vemos o interior da casa como quem observa através das janelas, como se testemunhássemos algo que, em verdade, não devêssemos ver. Aos poucos, assumimos também a perspectiva de câmeras que circulam entre as personagens, como se acessássemos vídeos caseiros produzidos por elas ou ainda reflexões bastante íntimas direcionadas especificamente ao público do cinema. Assumimos, de igual modo, em alguns momentos, a perspectiva de alguns convidados específicos da festa, enxergando detalhes de relações que, na experiência teatral, acabam ficando em segundo ou terceiro planos.
A partir de recursos tipicamente cinematográficos, como closes, minuciosos enquadramentos e poéticas composições entre áudio e imagem, ganham complexidade e lirismo os universos íntimos de cada personagem, assim como certas relações estabelecidas entre elas. Mais imersos em sutilezas dessa rede de relações entre as personagens, deixamos em muitos momentos de ouvir as reações do plateia, acessando com mais clareza palavras, silêncios, gestos e olhares que muito dizem sobre as três irmãs e seus conflitos.
“O tempo passa”, avisa Irina. “Rápido”, completa Olga, em tom de lamento. Aprisionadas por si mesmas a situações que já não desejam viver, as personagens de “E se elas fossem pra Moscou?” abandonam, aos poucos, a fachada festiva. Deixam, então, transbordar ao público vícios, obsessões e paixões desmedidas que as impedem de superar o indesejado estado presente das coisas e dar o passo necessário à mudança que tanto desejam e defendem ao longo do espetáculo.